À primeira vista, Spinning parece um gibi dispensável. Mais uma autobiografia, mais um coming of age sobre jovem descobrindo o mundo ao mesmo tempo em que descobre a si mesmo. Mas só parece – por três motivos.
Primeiro, por contar mais sobre a psiquê feminina durante a adolescência. Quantas obras semelhantes com homens protagonistas não existem por aí? São necessários mais relatos íntimos e profundos do ponto de vista de uma garota, como o feito por Tillie Walden. Nesse sentido, o livro funciona como HQ irmã de Aquele Verão, das primas canadenses Mariko e Jillian Tamaki, lançada recentemente pela Mino.
Segundo, por tratar de um tema obscuro até para o mais entendido fã de esportes: a patinação no gelo. A busca pela perfeição no ringue é tão intensa como o embate interior da artista em relação à sexualidade e à vontade de ser livre, de amar sem sentir medo.
Porém, para além dos temas, o que mais se sobressai na obra é sua capacidade de narrar visualmente, o terceiro motivo. A história de Spinning poderia virar filme, peça ou romance – mas não seria Spinning. O que faz desse quadrinho algo diferente é justamente o fato de ser quadrinho. É justamente a capacidade de Walden de manipular o tempo nas cenas, refletindo seu estado mental. Um exemplo simples, e lindo, está logo no começo do livro:
Na cena, vemos Tillie acordando cedo para treinar com sua equipe de patinação. Na primeira página, divididas em 24 quadros em seis fileiras horizontais, as ações da menina (colocar os óculos, desligar o despertador, se espreguiçar, vestir a roupa da aula, vestir o casaco) se arraaaaaaaastam, como alguém sonolento às 4h da manhã.
A página seguinte ganha agilidade. São apenas três fileiras horizontais, com quadros mais verticais – afinal, a protagonista está desperta, em pé. Duas ações (amarrar o cabelo e sair para a calçada) tomam dois terços da página.
E aí vem o toque de gênio: sentada na calçada, sozinha na madrugada fria, esperando a carona para o ginásio enquanto luta contra o sono, a menina volta a perceber o tempo correr mais devagar. Retornam, então, os quadros pequenos, que deixam tudo mais lento.
Vencedora do Eisner de Melhor Obra Baseada em Fatos Reais em 2018 (por esses motivos citados e vários outros), Spinning acabou de sair no Brasil pela Veneta.
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2 comentários sobre “Aula do dia: como modular o tempo em uma cena, com Tillie Walden em “Spinning””