A vida escondida nos gestos cotidianos – “Jardim”, de Manda Conti

Somente numa feira de quadrinhos é possível se deparar com pequenas joias que, provavelmente, não estarão disponíveis nem mesmo nas comic shops mais especializadas em material alternativo ou underground. Existe um caráter artesanal, de pequeno produtor, na cena nacional de HQs somente visível (e consumido) em eventos. Por isso mesmo, os dois anos e meio de inferno pandêmico fizeram muito mal à nossa produção. Celebremos, pois, a volta das reuniões presenciais – é com elas que o gibi independente brasileiro anda pra frente.

Todo esse preâmbulo pra dizer que, assim como com os zines Queda, de Lalo, e Gume, de Ivo Puiupo, ambos lançados no Festival Internacional de Quadrinhos – FIQ de 2018, outra vez uma publicação miúda, lida por pouquíssimas pessoas, se transforma em modelo para possibilidades narrativas, visuais e líricas. Jardim, de Manda Conti, foi lançado na Ogra, feira organizada pela Ugra Press em São Paulo, no mês de setembro. Em apenas quinze páginas, a artista esconde a beleza da vida em gestos do cotidiano.

Graficamente, o zine se assemelha a qualquer outro. Tamanho A5, grampeado, papel pólen. Mas existe uma quebra de expectativas em relação a como a história se desenrola, história essa que já começa na capa. Ora com páginas sem requadros, ora com grid de vários pequenos quadrinhos, ora misturando essas duas estruturas, ora abrindo mão das palavras, Manda apresenta uma tarde de duas pessoas num jardim, jogando conversa fora enquanto tentam desvendar um pequeno mistério encontrado por ali. Um MacGuffin que até é mostrado no fim, embora não se tenha explicação lógica para sua existência – e tudo bem, pois nem era o objetivo central da obra.

O que vale é a observação sobre a grandiosidade dos momentos fugazes do cotidiano, sobre o amadurecimento ocorrido quando nem estamos atentos. Tem toda uma falsa simplicidade nesta HQ, passando pelo texto coloquial enxuto e pela clareza na arte em lápis, responsável por tocar a sensibilidade do leitor.

Nem todo desenhista com um traço solto, ligeiro e desleixado como o de Manda alcança uma legibilidade do nível dela. Com menos de um punhado de riscos, a artista define as formas de árvores, mãos, pernas, aves e interruptores. Dá pra enxergar um tanto de Eleanor Davis no estilo e um tanto ainda maior de Puiupo, um quadrinista jovem que já exerce uma influência enorme (nos temas e na forma de narrar) em gerações mais jovens ainda. Jardim não existiria sem o trabalho do luso-brasileiro.

Publicado pelo selo Bocó, criado em parceria com o pernambucano José Roberto Celestino (outro talento precoce pra se ficar de olho), o gibi faz parte daquelas obras escondidas, as quais podem mudar a vida dos leitores – para isso, basta encontrá-las.

Leia outros quadrinhos de Manda Conti aqui.

Curta a página de O Quadro e o Risco no Facebook e siga o blog no Instagram!

Publicado por

Deixe um comentário