“Minha tendência é pensar que o bom design vai além do que seria aplicável ou não às HQs. Deve apenas funcionar” – entrevista com o designer e capista Tom Muller

O cinema nunca mais foi o mesmo após Saul Bass começar a trabalhar com filmes. A partir dos anos 1950, esse designer nova-iorquino criou inúmeros pôsteres e sequências de créditos para obras de renomados diretores, incluindo Alfred Hitchcock, Otto Preminger, Billy Wilder e Martin Scorsese. Além de desenvolver uma estética própria e reconhecível, influenciou tudo o que viria depois nessa mídia ao incorporar elementos visuais da propaganda e do minimalismo.

Antes de Bass, pôsteres eram assim:

wizard of oz

 

Então, ele começa a fazer coisas deste tipo:

anatomy-of-a-murder

seconds

thefixer

 

Ao invés de usar fotos dos atores e de cenas dos longas, Bass fazia ilustrações que eram extensões das temáticas abordadas. Com ele, estilo era substância. Os créditos iniciais também ganharam relevância e passaram a representar um microcosmo do filme como um todo:

 

Nos quadrinhos, uma revolução semelhante está em andamento há alguns anos. Os conceitos de Saul Bass, e de outros profissionais históricos do design como Paul Rand e Milton Glaser, vão se tornando padrão nas capas dos gibis das editoras mainstream no mercado americano.

A indústria passou décadas insistindo num modelo básico para a capa das publicações, algo que existe praticamente desde a criação do super-herói, em 1938: a clássica imagem de pessoas posando para uma câmera invisível. Algo mais ou menos como isso:

x-men
(Eu sei que ESSE não é o padrão, só uso aqui pra chocar mesmo…)

 

Atualmente, embora ainda existam exemplos como os acima, vários títulos usam artes provocadoras, que fogem da mesmice:

hawkeye

the-wicked-the-divine

xmenlegacy

manhattanprojects

 

A forma de mostrar os personagens, as fontes, as cores, as composições: os elementos indicam o teor da história antes mesmo de o leitor folhear a revista – você não precisa comprar aquela edição de Hawkeye pra saber que a trama tem todo um estilo setentista ou que The Wicked + The Divine é uma explosão de brilhos e luzes sobre o showbiz.

Todo esse preâmbulo é necessário para explicar a importância do designer belga Tom Muller no cenário atual. Um dos principais capistas do mercado norte-americano, já trabalhou para DC e Valiant, além de ser presença constante em materiais da Image Comics – muitas vezes criando a apresentação visual dos encadernados das séries nas quais se envolve. Ele talvez seja o maior discípulo de uma estética mais “purista” de design, da escola de Bass, a mexer com quadrinhos atualmente.

Conversei por e-mail com Tom a respeito dessa nova tendência nas capas de HQs, do conceito de “bom e mau design” e de como funciona seu processo criativo.

muller2018
Capas feitas por Muller ao longo de 2018: seu trabalho é marcado por tipografias fortes, que muitas vezes tomam a maior parte da página, além do uso de imagens descentralizadas

 


 

Tom, você é um designer mundialmente reconhecido, tendo prestado serviços para grandes companhias multinacionais como Google, Samsung, Sony e Universal Studios. De repente, quadrinhos. Por que começar a trabalhar nesse meio?

Crescendo na Bélgica, fui exposto às bandas desenhadas europeias desde que me lembro. Elas sempre estiveram lá. Tintin, Bob e Bobette, Asterix, Blake & Mortimer, Spirou. A lista vai embora… Quando tinha sete anos, meu pai trouxe pra mim meu primeiro comic americano, com o Homem-Aranha lutando contra o Rocket Racer, e aquilo me viciou por toda a vida.

Sempre tive carinho por HQs, e a faculdade de Arte nutriu em mim a ideia de ser quadrinista. Mas logo eu me apaixonei pelo design. Então, quando comecei a trabalhar, tentava encontrar um caminho de volta aos gibis e, de alguma forma, combinar as duas paixões – o que eventualmente aconteceu. Hoje, ainda faço vários projetos nas áreas comerciais e em agências de marketing. Porém, meu trabalho nos quadrinhos tem ganhado maior visibilidade.

Qual seria sua definição de “design voltado para HQs”?

Pra mim, é aquilo que une todos os elementos. É o que ajuda o livro a se destacar nas prateleiras, é o logotipo que você reconhece, a linguagem unificada de tudo ao redor da história que garante imersão ao leitor.

Existe diferença entre o processo de criação para quadrinhos e o processo de criação para outras mídias?

Acho que há muitas semelhanças. Como designer, você essencialmente resolve uma questão de comunicação: como eu entrego a mensagem de um jeito visualmente atraente e rico, que se encaixa ao conteúdo – seja de um site, uma identidade visual, capa de livro ou logotipo de uma série. A principal diferença é que as HQs são para entretenimento, então existe uma liberdade extra para você chegar além.

weatherman
Layouts para o conteúdo do primeiro encadernado de The Weatherman, da Image: fontes em tamanho enorme e exploração das cores básicas da série criam uma identidade visual de fácil assimilação pelo leitor

 

A maioria das revistas de super-herói insiste num molde desgastado de capas. Essa prática contamina até mesmo parte da produção independente, que deveria ser livre para usar soluções visuais inovadoras. Apesar disso, as referências do mercado mainstream americano mudaram nos últimos anos, graças a artistas como você, David Aja e Mike Del Mundo, que inseriram composições minimalistas e experimentais. Você acredita que atualmente exista mais espaço para fugir do padrão da indústria?

Com certeza. A cada ano, eu vejo criadores tomarem decisões cada vez mais ousadas em relação a capas e design de publicação. Eu já tive oportunidades de fazer coisas puramente “de design“. É um avanço lento, com certeza, mas acredito que a mídia como um todo – especialmente em trabalhos autorais – vai continuar impulsionando essa evolução.

Você poderia apontar alguns exemplos de bom design em quadrinhos?

Sou grande fã de Rian Hughes (da Device), que cria materiais fantásticos há muito tempo. Acho que a DC Comics está produzindo um visual bastante coeso para seus livros ultimamente. E também estou impressionado com o trabalho que Jared Fletcher está fazendo na TKO Comics, desenhando todos os logotipos e pensando no aspecto visual de todos os títulos da editora.

E aqueles exemplos ruins, que não funcionam… teria algo em mente?

Vou dizer o seguinte: qualquer design que se apoia em efeitos, e não é legível, é um design ruim. Existem várias ocasiões em que parece que esse conceito não é pensado desde o início, não faz parte da consideração quando se cria. As obras que se destacam são aquelas que os criadores e/ou editores têm a percepção de fazer do design algo próprio do pacote, ao invés de um simples logo colada no final de tudo.

newworld
Na minissérie The New World, também publicada pela Image, a paleta de cores é reduzida e elementos geométricos entram na equação, gerando composições mais abstratas

 

Como é seu processo criativo? Você se envolve com roteiristas e desenhistas para captar a abordagem de uma obra na qual está trabalhando, por exemplo?

Eu geralmente começo a trabalhar com as equipes criativas bem cedo no processo de criar uma série, especialmente em projetos autorais – algumas vezes, até meses antes de um livro ser anunciado. Trabalho de forma próxima para determinar o visual e o sentimento, o tom e a direção geral para a qual o design vai se encaminhar. Há muito diálogo e eu me torno parte do processo.

Com projetos de empresas, como DC ou Valiant, é um processo muito mais direto (e rápido) de responder instruções de editores ou diretores de arte, e fazer um logo independente ou um layout de capa baseado em solicitações precisas. É muito mais uma relação do tipo designer-cliente.

Minhas influências estão enraizadas no moderno e pós-moderno. Minha tendência é pensar que o bom design vai além do que seria aplicável ou não às HQs. Deve apenas funcionar. Acho que a razão de parecer existir uma lacuna em termos de como o design das HQs evoluíram está no fato de as pessoas considerarem os quadrinhos como uma entidade separada, fora da cultura popular em geral.

O jovem roteirista Ales Kot é um parceiro profissional constante em sua carreira. Acredito que você esteja envolvido em todos os trabalhos dele na Image Comics, incluindo séries e minis como Days of Hate, Material e The New World. Como essa colaboração funciona?

Ales e eu começamos a trabalhar juntos em Zero e acho que simplesmente nos conectamos. Um respeita o trabalho do outro e gostamos de fazer coisas em parceria. Seus projetos me dão a oportunidade de explorar diferentes tipos e jeitos de fazer design. O mesmo vale para o escritor Iván Brandon, com quem produzo há mais de dez anos.

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Capas da mini Days of Hate, escrita por Ales Kot: as imagens do desenhista croata Danijel Zezelj representam simbolicamente o tema tratado em cada capítulo. Há até espaço para citações visuais a filmes que dialogam com a trama política da obra, como Senhores do Crime, de David Cronenberg (o segundo da última fileira) e O Exército das Sombras, de Jean-Pierre Melville (o quinto da última fileira). Tudo disposto por Muller de uma forma sóbria, fria, sem excessos

 

Você se considera um criador de quadrinhos, do mesmo nível que os demais envolvidos na produção das histórias?

Eu hesito em me chamar assim. Eu trabalho com quadrinhos, claro, mas focando em um aspecto bem específico da criação – apesar de esse aspecto ser muito visível. Eu não crio as histórias, por isso sinto que o termo não se aplica totalmente ao meu trabalho.

Qual será o futuro do design em gibis?

Espero que os quadrinhos em geral possam se distanciar dos tradicionais padrões de capas (com o logo no topo) e explorar soluções mais modernas, envolvendo os designers ainda mais no processo criativo como um todo.

 

 

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