Analisando “Você é um babaca, Bernardo” – entrevista com Alexandre S. Lourenço

Na minha lista de melhores do ano, Você é um babaca, Bernardo está lá. Além de um enredo com o qual o leitor pode facilmente se identificar (apresentando a questão da rotina massacrante da vida moderna, responsável por destruir sonhos profissionais e desejos pessoais), tem uma das mais inventivas narrativas dos últimos tempos. Pra tentar entender como se constrói uma obra tão única como essa, bati um papo por e-mail com o quadrinista Alexandre S. Lourenço, autor também de Robô Esmaga.

Antes, vale entender o “funcionamento” de Você é um babaca, Bernardo. O primeiro terço da HQ tem a seguinte diagramação:

Cada página é formada por um grid de nove quadros, cada um representando um dia específico na vida de Bernardo. Portanto, para seguir cronologicamente a rotina do protagonista, a leitura pode ser feita assim: primeiro quadro da primeira página, primeiro quadro da segunda página, primeiro quadro da terceira página e assim por diante. Ao fim daquele dia, volta-se para o início: segundo quadro da primeira página, segundo quadro da segunda página, segundo quadro da terceira página…

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Mais pra frente essa estrutura muda, incorporando outros elementos tão interessantes quanto esses.

Abaixo, segue a entrevista. Falamos a respeito das influências estilísticas desse trabalho, o uso de cores e cenários para narrar os sentimentos dos personagens e a presença de citações à cultura pop.

 

Alexandre, procurei por referências semelhantes ao que você fez em Você é um babaca, Bernardo e não encontrei nada parecido. Tem aquela tira antiga do Gustave Verbeek, Os Altos e Baixos da Senhorita Lovekins e do Velho Muffaroo, na qual, após chegar ao fim, você a vira de cabeça pra baixo e volta lendo até o início – fazendo com que a história mude completamente de sentido. Tem o Chris Ware, em HQs como Jimmy Corrigan e Building Stories. Mas, ainda assim, são conceitos bem diferentes do seu. Consegue explicar como foi chegar a esse tipo de narrativa fragmentada? Era algo que a história pedia e então você foi criar algo novo?

Alexandre S. Lourenço: Eu tenho influência de tudo com o que acabo entrando em contato. Nos quadrinhos, especificamente, Chris Ware, que você citou, é uma influência muito importante para mim, mas, pra fazer Bernardo, não tenho nenhuma referência de onde eu peguei uma ideia pra começar a reestruturar do meu jeito. Não que tenha alguma coisa errada com isso, mas não existiu nenhum ponto de partida pra criar esse quadrinho (se existir algum outro que tenha utilizado uma estrutura narrativa similar, desconheço).

De qualquer forma, não vejo a história pedindo por uma estrutura narrativa menos usual, alguma forma diferente que eu preciso criar para estar apto a contar a vida do personagem. Ficar pensando sobre isso nunca é necessário, mas é uma das coisas mais divertidas quando se faz um quadrinho. Bernardo é uma história, basicamente, sobre rotina e eu queria falar disso, sobre as coisas que esse cara faz todos os dias, sobre a sua cabeça que vai passear enquanto ele trabalha e a necessidade de se separar do corpo pra conseguir lidar com o dia a dia.

Na primeira versão, a ideia era mostrar a rotina do protagonista de forma linear. Seriam três dias, se não me engano, que eu mostraria de forma repetida, antes de ele conhecer a Gabriela, seu interesse amoroso. E, em algum momento, me apareceu na cabeça a ideia de apresentar essa rotina da forma que está no livro. Acho que por ter ficado pensando nisso por algum tempo, minha cabeça acabou fazendo o trabalho sem me contar e depois jogou a ideia no ar. É alguma coisa por aí. Meio que insistindo no assunto, mas sem forçar.  Você fica submerso nesse mundinho que está criando e as ideias vão se fazendo sozinhas. A sequência narrativa é o resultado de um processo constante de permanência em um mesmo tema, em como abordar uma história.

O contrário também acontece. A forma aparece sozinha, sem estar necessariamente ligada a um conteúdo. Aí, se faz o caminho de volta, pra saber qual conteúdo poderia se encaixar na forma que você acabou encontrando. Parando pra pensar, acho que eu penso frequentemente na forma, depois no conteúdo… Não sei se essa é uma coisa pra se orgulhar, mas pra mim, normalmente, é assim que funciona.

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Ao reler Bernardo, tentei seguir as “histórias” contadas em cada quadro – ao invés da sequência normal da página. Senti que também funciona, apesar de se perder as surpresas surgidas ao longo da trama. Por outro lado, a questão da monotonia do dia a dia se reforça, pois vemos a rotina do personagem se repetindo em looping. Existe uma forma correta para se ler a HQ?

Eu acho que não. Não gosto de botar nenhum tipo de regra. É muito legal ter conseguido fazer uma história na qual o leitor pode se aproximar de formas variadas, com um efeito diferente a partir da mudança de perspectiva. Fico feliz de ter conseguido fazer algo que possibilite esse tipo de reflexão na leitura.

Quando eu fiz o quadrinho, foi pensando na página, na relação de um quadro com o outro se ligando com a página seguinte. Até por isso, existem essas surpresas do dia a dia, pra que sejam possíveis varias leituras, ir e voltar pelas páginas enquanto se lê.

Não sei se tem alguma forma correta de leitura. Acho que lendo um quadro por página, fica mais interessante pra entender o peso da rotina sem graça do Bernardo. Já lendo toda a página, pode-se abrir pra reflexão que os dias não são tão iguais como parecem. Faz sentido?

Todo o sentido. E, como leitor, é muito interessante poder escolher uma forma de se apreciar uma obra – e o melhor ainda é voltar pra apreciá-la de outras maneiras.
Ainda sobre a narrativa: 
é tudo aquilo que já comentaram por aí, uma abordagem diferente, única etc. Mas algo pode passar despercebido pelo leitor: sua brilhante “direção de arte”. Como num filme (e ao contrário de boa parte dos quadrinhos), você usa objetos de cena, roupas e, principalmente, cores para contar a história. Alguns exemplos que me vêm à cabeça:
-os quadros pendurados na parede durante a primeira parte da história (incluindo uma figura de casal no dia em que Bernardo conhece Gabriela);
-a mudança dos companheiros de trabalho do Bernardo, representando a passagem de tempo;
-a programação da tevê, fazendo referência direta ao momento emocional dos protagonistas;
-as cores das roupas, lençóis etc. (os lençóis se tornam cinza quando a relação deles esfria, ao contrário do bordô de quando tudo estava bem).
Como é manter o controle sobre tudo isso? Afinal, boa parte da história é contada de forma não-linear.

Foi tenso. Bem difícil controlar esses pequenos detalhes, pois é uma historia de rotina em que se expõe muita repetição. Eu tive algum cuidado em não deixar passar nada – o pessoal da Mino, a editora do livro, também ajudou. Muitas pessoas acham que é um quadrinho minimalista e não sei se concordo com isso. Mas, de qualquer jeito, foi um processo caótico.

Essa ideia do minimalismo talvez seja pelo fato de seu desenho ser pequeno, delicado. Mas, te garanto, é uma delícia prestar atenção em tudo o que tem ali, voltar, comparar o que mudou e tal. Agora, conte mais sobre esse processo…

A forma que eu encontrei pra fechar isso na minha cabeça, de modo que pudesse ter algum tipo de controle pro resultado final sair do jeito que queria, foi escrever a história de forma linear e depois montar do jeito que está no livro.

Eu tinha varias folhas A3 nas quais separei em dias aquela sequência inicial dos nove quadros. Ia escrevendo o que mudava de um dia pro outro: qual quadro estaria na parede, o quê estaria passando na televisão, a planta substituindo o cachorro.

Eu gosto de encher de detalhes. Gosto disso em qualquer coisa, de ter uma estrutura que vai além da história, de oferecer a opção de não levar em conta esses detalhes enquanto se lê – mas que enriquecem o resultado final se você prestar atenção.

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Tem outro momento fantástico de narração: quando você abre parênteses na página pra iniciar um longo flashback. De onde veio essa ideia ao mesmo tempo tão óbvia e genial?

De novo, isso faz parte do processo de construção de uma HQ. Quando se faz uma tira, que é uma ideia meio que encapsulada, o resultado termina sendo próximo do conceito inicial. No quadrinho longo, a história carece de ser mais trabalhada, mais desenvolvida. E isso tem consequências.

Essa ruminação toda, ficar trabalhando no mesmo assunto por muito tempo, sem parar, faz você ter ideias. O legal é ficar atento pra conseguir capturar essas coisas. Não é algo do tipo “vou usar sinais gráficos no meu quadrinho”. Eu sabia que teria um flashback na história e fiquei pensando em como inserir isso. Até que uma hora a ideia apareceu.

Eu pensei que a ideia era minha, original. Aí eu descobri que o Pedro Cobiaco fez uma coisa parecida no Aventuras na Ilha do Tesouro – lá, tem um prólogo em que ele usa uma página inteira pra abrir o parênteses e, depois, outra página pra fechar. Foi engraçado, pois ele trabalhou na edição do meu livro e até comentou comigo que tinha achado legal a ideia – e nem se lembrava de ter feito antes. Eu li Aventuras antes de ter essa ideia pro Bernardo e muito provavelmente acabei copiando sem saber (da forma mais honesta possível).

Durante a CCXP, eu comentei isso e ele me falou pra ficar tranquilo, que deve ter copiado de outra pessoa. “Alguém já fez essa porra”, me disse. Mas acho isso muito interessante quando se faz quadrinhos. Tem muita coisa ainda não explorada. Elementos de pontuação são algo que quero usar mais.

Lembro do Rafael Sica, que fez uma coisa parecida há um tempo. Nos finais de ano, o último quadrinho que ele postava (não sei em quais anos ele fez isso, mas lembro de ter visto pelo menos uma vez) era um ponto, só um ponto final sem nenhum outro texto – querendo dizer que o ano tinha acabado, mas sem nenhuma palavra. Eu achei brilhante. Talvez tenha copiado isso dele e do Pedro, vai saber… E eles devem ter roubado de alguém também.

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O que também me chamou a atenção foi a presença de elementos da cultura pop em diversas passagens. Dá pra encontrar action figures nos cenários, referências aos irmãos Coen, Hora da Aventura, Wes Anderson, super-heróis, a outros quadrinhos – como Bear, da Bianca Pinheiro, e Love & Rockets, dos irmãos Hernandez. Qual o motivo de citar todas essas coisas?

Não sei ao certo. Acho que são coisas que eu gosto, basicamente. O caso de Bear, da Bianca, é um pouco diferente. O Greg, marido dela, me disse que queria fazer uma ponta no meu quadrinho. Aparecer como extra, lá no fundo, qualquer coisa. Poderia ser um rabisco qualquer, mas que deveria representá-lo. Então, coloquei a Bianca vestida de Raven e o Greg, de Dimas, dois personagens da obra dela.

O resto das referências são coisas que tem a ver comigo, piadas internas. Quando consegui, tentei inserir coisas que faziam sentido pra história. Outras vezes, foi só pelo prazer da citação mesmo. O quadro do Basquiat, a Mônica e o Cebolinha se revezando como colegas de trabalho… Desenhar coisas repetidas é cansativo, então tentei deixar menos maçante. Quando funcionava pra história, melhor; quando não, paciência.

Tem uma cena em particular bastante intrigante: o momento em que Gabriela leva Bernardo para o trabalho, voando, vestida de super-herói. Lembrei imediatamente do final de Jimmy Corrigan, do Chris Ware, cuja ideia é semelhante. Essa é a única splash page de duas páginas de todo o seu quadrinho (me corrija se estiver errado). Além de representar o momento de maior segurança emocional do protagonista, existe algum significado especial para essa passagem?

Me corrija também, se eu estiver enganado, mas tem pelo menos mais outras duas. No final, quando o corpo se reúne com a cabeça: duas páginas em branco, com o corpo e a cabeça se reunindo na direita (como o fundo é todo branco, acho que perde a intensidade de uma splash page dupla, mas tá lá). A segunda, também disfarçada, foi feita começando na página da direita e terminando na página da esquerda, algo diferente do normal. A ideia de dividir assim era pra mostrar fisicamente, com a ajuda do livro, a separação do corpo e da cabeça. As duas são splash pages falcatruas, mas pra mim, ainda são splash pages.

Essa que você citou é sim uma homenagem muito direta e honesta ao Ware e seu Jimmy Corrigan. Eu tentei achar o mesmo tom do azul do fundo, o posicionamento dos personagens. Só não botei neve por que ia ficar muito fora de lugar numa história que se passa, pelo menos na minha cabeça, em São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba. Então, foi com chuva mesmo.

Apesar da referência, que é clara, eu tentei encaixar essa homenagem de modo que fizesse sentido pra história. Os dois personagens passam por momentos parecidos quando essa cena acontece, mesmo que com necessidades diferentes. Pro Bernardo, é o ápice da felicidade que sua cabeça consegue aceitar. Logo na página seguinte, quando eles voltam pra casa, aparece uma folha amarela proveniente da casa mostrada no final do livro. Isso revela que aquela realidade, pra existir, tem que ser em detrimento de um outro lugar, amarelado, que a cabeça chama de casa. Acho que o sentimento é esse.

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2 respostas para “Analisando “Você é um babaca, Bernardo” – entrevista com Alexandre S. Lourenço”.

  1. […] jabs, uppercuts e ganchos, Alexandre S. Lourenço encontra novas formas de se criar quadrinho, assim como tinha feito em Você é um Babaca, Bernardo. Desta vez, conta a história de um boxeador longe da juventude, lutando (em todos os significados […]

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