Um dos mais excitantes quadrinistas em atividade no planeta teve um gibi publicado pela primeira vez no Brasil no final de 2022 – e, por algum motivo, tal livro passou ao largo do grande público e até mesmo da crítica (o que diz muito sobre o público e mais ainda sobre a crítica). O Lugar Errado, do belga Brecht Evens, foi uma aposta certeira da editora Figura que, pelo jeito e infelizmente, deu água. Mas ainda há tempo para trazer a obra e o artista à pauta de debates.
Dono de um estilo reconhecível e inimitável, Evens é a definição do multiartista genial: pinta, desenha, ilustra, escreve, toca (piano, e vai saber que outros instrumentos mais), tudo com a mesma qualidade (bem alta). Faz quadrinhos desde 2007, tendo ficado famoso internacionalmente em 2009, quando do lançamento de O Lugar Errado na América do Norte, pela Drawn & Quarterly, o que lhe rendeu uma indicação ao prêmio Eisner. A partir dali, o mundo passou a ter contato com um trabalho visualmente orgiástico.
Suas HQs partem de fios de enredo para abraçar grandes questões humanas. O Lugar Errado mostra uma reunião de amigos da escola; The Making Of fala sobre uma exposição artística; Panther revela a relação entre pai e filha (esse é dos grandes quadrinhos do século); The City of Belgium narra uma noite de bebebeiras. Dá pra se aprofundar mais nas sinopses, mas as tramas são simples. É por meio de uma arte caleidoscópica que os gibis vão se alterando, temas vão surgindo, empilhando-se uns nos outros, personagens vão se transformando e a vida, em suas diversas formas e significados, se torna palpável.
As páginas de Evens são de uma beleza tão acachapante que é impossível estar em contato com uma obra sua por muito tempo em sequência. Acredite: é preciso ler com parcimônia, para apreciar detalhes, identificar as diversas técnicas de desenho, se perder no design de páginas que quase nunca se repete – e, principalmente, para não sobrecarregar os sentidos.
A seguir, segue uma entrevista feita com o autor, por e-mail, no ano passado. Por inúmeros motivos, não terminamos o papo (três perguntas ficaram sem repostas), mas o conteúdo vale a pena mesmo assim. Conversamos sobre inspirações e processos artísticos.

Brecht, em seus quadrinhos, você retrata mundos deslumbrantes cheio de cores, maravilhas, mistérios e emoções. De onde vem isso? Você é influenciado de alguma forma pela beleza dos Flandres, região da Bélgica onde nasceu, ao desenhar?
Os “mundos festivos” que você vê em O Lugar Errado e The City of Belgium são inspirados nas diversas cidades que amei. Gante, Barcelona, Berlim, Paris… E talvez também no tipo de lugar com que sonhamos. Como muitas pessoas, já sonhei com espaços infinitos e incompreensíveis como o Disco Harem, discoteca que aparece nessas obras.
Acima de tudo, acho que esses espaços são simplesmente o que quero desenhar, as formas e linhas que surgem naturalmente quando seguro um pincel. Ambos os livros se passam na cidade grande, então tenho a liberdade de enlouquecer com a arquitetura, pois cada dono de bar ou boate pode ter dado asas à imaginação na hora de decorar o local.
Por falar no seu desenho, um amigo o definiu como “uma overdose aos sentidos, mas uma boa overdose”. Acho que é uma definição bem precisa: não me lembro de nada próximo ao seu trabalho em termos de texturas, diferentes técnicas aplicadas, personalidade, uso das cores… Como (ou por que) você criou esse estilo?
O estilo foi desenvolvido quando comecei a fazer a arte para O Lugar Errado. Surgiu tentando desenhar um tema específico: uma cidade viva, animada. Eu estava experimentando muitas coisas em cadernos de rascunho, mas quando tentei desenhar uma paisagem urbana, parecia com uma cidade de brinquedo em vez de algo real, com gente de verdade vivendo ali.
Isso funcionou quando abandonei a perspectiva realista, me inspirando parcialmente ao observar os desenhos de Georg Grosz. E ficou lindo ao começar a usar o pincel com mais liberdade, iniciando cada desenho como um esboço de pincel com cor direta e depois adicionando detalhes menores, misturando materiais como nanquim, guache e giz de cera para obter uma textura mais rica e variada. Tive mentores importantes em relação a isso, como minha professora na escola de artes Goele Dewanckel e meu amigo artista Randall Casaer.

Ainda em relação aos “lugares dos sonhos”: você prefere desenhá-los ao invés de desenhar lugares verdadeiros, “chatos”?
Enquanto você faz um desenho complexo, você encontra espaços com muitas divisões geométricas, cantos, janelas, espelhos, escadas, pilares, coisas para brincar, formas com as quais os personagens possam interagir. Mas um espaço simples também pode ser ótimo para desenhar. O “chato” provavelmente surge quando estou tentando recriar fielmente um lugar existente, com cores e formas específicas às quais preciso ser fiel, então não faço muito isso.
Qual o tamanho das suas páginas originais? Seria muito difícil fazer todos os pequenos detalhes, linhas e formas em uma página pequena, não?
Na maioria das vezes, os desenhos têm cerca de uma vez e meia o tamanho da página impressa, ou seja, um formato A3 para uma página A4. Em alguns casos, faço ainda maior.
Como você define o estilo de uma determinada cena em relação às técnicas de desenho a serem aplicadas? É o tom do que será visto, as emoções presentes, os personagens?
Em parte isso é intuição, em parte é o meu estado de espírito, já que posso estar lendo um livro de xilogravuras japonesas ou desenhos esotéricos e sinto vontade de evocá-los na arte. Às vezes estou com vontade de trabalhar em um determinado estilo e encontro uma página do quadrinho que pode “precisar” desse estilo.

Para mim, suas tramas fluem com muita naturalidade, quase como se fossem feitas como um fluxo de consciência – mas, ao mesmo tempo, noto uma estrutura, pensada do início ao fim dos enredos. Como você concebe uma história? Você escreve roteiros?
As histórias começam como frases e esboços em um caderno, depois vão ficando cada vez mais ordenadas cronologicamente, aos poucos se tornando um roteiro. Costumo começar a desenhar antes de terminar um storyboard completo. Às vezes penso que tenho o roteiro antes de desenhar, mas no processo de criar as páginas faço muitas alterações na história. Até tento ser metódico, mantendo um storyboard em uma pasta, imprimindo as páginas finalizadas e colocando-as nessa pasta também, mas meu processo nunca fica muito padronizado.
Em O Lugar Errado, há partes que foram bastante improvisadas. Me lembro de estar em casa tentando pensar em algo embaraçoso que pudesse acontecer ao personagem Gert no caminho para a boate. Saí pra dar um passeio em busca de inspiração e não dei cinquenta passos antes de me deparar com uma despedida de solteiro, em que as mulheres me fizeram escrever meu nome em um par de peitos infláveis. Isso me pareceu perfeito, então voltei imediatamente para casa e desenhei a cena, que acabou entrando no livro.
Interessante você dizer que uma experiência real acabou na HQ, eu tinha uma pergunta sobre isso. A maneira como seus personagens falam prova que você tem um ótimo ouvido: o diálogo parece dinâmico, como se fosse dito por pessoas feitas de carne e osso, e não por desenhos. Com que frequência você usa essas experiências reais nos roteiros? E como você sabe que determinado diálogo seria irreal por esse aspecto?
Agradeço a sua observação. O som do diálogo é muito importante para mim: a poesia das hesitações, das pessoas procurando como dizer alguma coisa. Porém, meus diálogos quase nunca são retirados da vida real – quase sempre me esqueço de fazer anotações desse tipo. Apesar disso, eu traduzo algumas experiências reais para meus livros. Um amigo pode ter me contado uma história de sua vida ou eu extrapolo algo vivido por mim.
Muitas vezes, ao escrever, você precisa de um certo tipo de momento, e o catálogo de vivências mais próximo é o da sua própria vivência. Então, um pouco de autobiografia acaba entrando em uma obra porque é isso que você tinha na sua geladeira mental quando foi procurar “comida” para as histórias.
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