O inferno segundo Mike Mignola

A mente estremeceu mais temerosa
Ao chamejar de fogo, ao som de pranto:
Encolhi-me ante a cena pavorosa.

De que descia então, com mor espanto,
Pelos males, que via, fiquei certo,
A mim se avizinhar a cada canto.

A Divina Comédia – Inferno, Canto XVII (Dante Alighieri, tradução de José Pedro Xavier Pinheiro)

Uma das grandes criações nos quadrinhos em todos os tempos (pra mim, ao menos), Hellboy levou décadas sendo construído como uma persona trágica por trás do grandalhão engraçado que desce a porrada em monstros. Ao longo de um sem número de histórias, ele enfrentou todo tipo de entidade sobrenatural (como membro do Bureau de Pesquisa e Defesa Paranormal), lutou contra a sina de ser o escolhido para trazer o apocalipse ao universo, somente para morrer e ser jogado no inferno – o lugar onde todo demônio deve estar, oras.

Hellboy no Inferno, minissérie em dez capítulos lançada a conta-gotas de 2012 a 2016, era pra ser o fim de sua saga – isso se Mike Mignola não seguisse publicando gibis com o gigante vermelho (tudo bem, a qualidade segue boa). Na verdade, o desenvolvimento do personagem tem sim como ponto final a passagem dele pelo submundo. Um ponto final estranho, bem diferente de tudo que viera antes, e ainda assim magistral, principalmente pelo modo como o autor retrata esse espaço de trevas.

Descenso
Mignola inverte a expectativa do leitor logo de cara. A estadia do protagonista no inferno será calcada no campo do simbólico, uma busca para se libertar dos fantasmas do passado (laços familiares, traumas, amores perdidos). O local não será um campo de batalhas para Hellboy vingar a morte, pois os ministros, duques e cavaleiros infernais, incluindo suas legiões de demônios, fugiram ao saber que ele estava a caminho.

Existe ação na HQ, embora sem grandes consequências para a trama. Parece que os personagens lutam por não terem outra coisa a fazer – ainda mais num lugar em franca decadência, cheio de construções definhando pelo tempo. Uma suposta suntuosidade ficou há muito pra trás. A desolação material é maior que o desespero espiritual: ao invés de almas torturadas (aqui, os pecadores são meros peixinhos no mar), melancolia e vazio existencial.

Pra amarrar isso, Mignola incorpora elementos de Um Conto de Natal, de Charles Dickens (a visita dos espíritos), e Macbeth, de William Shakespeare (um plot para assassinar um rei; no caso, Satã, o único senhor do abismo ainda presente por lá), além de menções a Paraíso Perdido, de John Milton, e A Divina Comédia, de Dante Alighieri.

A carta da morte
E é na tradução visual de tais ideias que o quadrinista se supera. Ao invés da imagética tradicional, com fogo e sombra por todos os lados, o inferno mignoliano conta com o traço mais abstrato da carreira do autor, sendo pintado de tons de cinza, azul, roxo, verde. Foge do senso comum para abraçar referências bem específicas, capazes de oferecer o peso emocional pretendido.

De cima para baixo: O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch; Díptico da Crucificação e do Último Juízo Final, de Jan van Eyck; e Mapa do Inferno, de Sandro Boticelli. Pintores flamengos e italianos do período da Idade Média-Renascimento criaram visões infernais baseadas nas descrições da Bíblia, sempre mostrando a danação humana causada pelo pecado. Mignola vai na contramão dessa representação
O quadrinista está mais próximo da grandiosidade de Pandemonium, de John Martin, porém com uma inversão: de perto, as construções e estátuas estão em ruínas, como se vê abaixo, reforçando a sensação de abandono

Há espaço para a influência (direta ou indireta) de movimentos modernos, como o Simbolismo do norueguês Edvard Munch. A carga psicológica do quadro Autorretrato no Inferno (abaixo) transparece por todo o gibi, no qual os personagens, muitas vezes, mais parecem espectros sem rumo.

Mas a arte dessa obra bebe mesmo é de Gustave Doré, pintor francês famoso por ilustrar clássicos da literatura, incluindo A Divina Comédia. O senso etéreo, de mistério, desses desenhos é muito bem capturado por Mignola.

Obviamente este não é o primeiro gibi a retratar o reino do diabo – no entanto, deve ser o mais autoral. Gary Panter chega perto em Jimbo’s Inferno, uma adaptação da obra de Dante no inconfundível estilo underground do autor, no qual o limbo é um shopping center em Los Angeles. Apesar da criatividade, as paisagens mais parecem um cenário pós-apocalíptico à la Mad Max.

Não poderia faltar menção à série Hellblazer, protagonizada pelo mago inglês John Constantine. Na fase escrita por Mike Carey e desenhada por Leonardo Manco, Constantine visita lá embaixo, um local cheio de chamas e luxo na mesma proporção, fazendo jus às pinturas do século 15.

Já em Sandman, Kelley Jones e Mike Dringenberg mergulham no gótico e nas bizarrices de Bosch.

Todos são belos exemplos, mas falta algo ali. Mignola inventou um inferno único. Frio, sem vida, quase humano. Talvez ele tenha acertado.

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