Criticar antologias de HQs é uma tarefa complexa: o conceito por trás da coletânea vale mais que as histórias publicadas? Deve-se analisar o recorte de artistas participantes? Como pesar a inevitável discrepância de qualidade entre os trabalhos? Em Música Popular em Quadrinhos – MPQ: Grandes Sucessos, essas preocupações não importam tanto: o projeto, parceria entre editora Brasa, Bienal de Quadrinhos de Curitiba e Instituto Guimarães Rosa-Lima, tem força suficiente para se sustentar, independentemente do tipo de avaliação feita.
Como o nome indica, o livro – primeiro de uma série, cujo segundo volume está em pré-venda – adapta canções brasileiras para a mídia dos quadrinhos. Ideia simples, poderosa e, ao menos até onde lembro, surpreendentemente inédita no País. São oito clássicos da música nacional, de Heitor Villa-Lobos a Beto Barbosa, de Tom Jobim a Clementina de Jesus, transformados em gibis, cada um com cerca de trinta páginas. A extensão das HQs tem bastante relevância: enquanto a maioria das antologias, por razões distintas, prefere histórias curtas (de cinco a quinze páginas, um pouco mais, um pouco menos), MPQ permite aos autores um bom espaço físico para criação.
E talvez seja esse o fator a fazer grande parte dos quadrinhos funcionar além da expectativa. Ao invés de se limitar a reproduzir a parte cantada, as letras, os quadrinistas partem para outro caminho, em busca de algo mais intangível, sentimental, qualidades inerentes a qualquer canção. Essas páginas a mais garantem maior desenvolvimento de roteiro e personagens – ponto positivo para o projeto editorial.
A seguir, comento as HQs.

O Trenzinho do Caipira, de Heitor Villa-Lobos (com poema de Ferreira Gullar)
Adaptada por Lelis
Datada de 1930, parte das Bachianas Brasileiras, O Trenzinho do Caipira é a obra mais conhecida do principal nome da música clássica nacional, Heitor Villa-Lobos. Décadas depois da composição, Ferreira Gullar fez um poema para a canção, o qual chegou a ser gravado junto dela. O escritor ordenou em palavras o que já se podia sentir ao escutá-la, criando a figura de um trem que corre, corre sempre, sem parar, como se fosse a própria vida. Lelis, então, imagina uma história delicada pra representar essa ideia, agora em imagens. Um neto pede à vó para recontar como ela conhecera o vô – e o resultado é uma narrativa paralela com três personagens cujos destinos se entrelaçam, um interferindo na jornada do outro, sem ao menos se darem conta disso. A tradicional aquarela do quadrinista mineiro traz uma sensação de nostalgia aos desenhos, semelhante a um passado longínquo recordado com carinho. Os trilhos das ferrovias se tornam tão sinuosos como as trajetórias dessas pessoas, levando-as, de vez em quando, a direções diferentes do itinerário.

Marinheiro Só, interpretada por Clementina de Jesus
Adaptada por Roberta Nunes
Se a origem de Marinheiro Só talvez tenha ligação com a população negra do Brasil, pois cantada em rodas de capoeira tempos antes de Caetano Veloso gravá-la em 1969, era óbvio que a interpretação mais popular da canção deveria vir de uma voz preta – no caso, a de Clementina de Jesus. Muito atenta a isso, a artista fluminense Roberta Nunes pega essa espécie de canto de trabalho e introduz nela racismo e política. Sua HQ retorna até a Revolta da Chibata, um motim de marinheiros negros contra os abusos cometidos por superiores da Marinha, ocorrida em 1910, no Rio de Janeiro. Era uma época de revoltas militares pelo mundo, incluindo uma que viraria filme por Sergei Eisenstein tempos depois, conduzida por marinheiros russos do encouraçado Potemkin. E é em Eisenstein e sua “montagem dialética” onde Roberta vai buscar inspiração. Com um preto e branco intenso, ela usa e abusa de closes, mistura splash pages com quadros pequenos, junta imagens díspares para gerar novos sentidos, tal qual o genial cineasta soviético. Se Marinheiro Só talvez fale sobre a imobilidade de uma vida difícil, era óbvio que a adaptação deveria olhar para a revolução como forma de se livrar das amarras sociais e raciais.

Balada do Louco, de Os Mutantes
Adaptada por Jéssica Groke
A letra de Arnaldo Baptista, escrita em parceria com Rita Lee, trata do mundo interior de uma pessoa. A visão sobre si próprio enquanto indivíduo, a não conformidade aos moldes da sociedade, são os temas que perpassam o clássico d’Os Mutantes. Inverter essa equação, analisando uma personagem a partir do exterior, é o que faz a história de Jéssica Groke perder a ligação com a obra original. Enquanto a protagonista do gibi, uma jovem musicista chamada Tate, se preocupa com a aparência e com a aceitação do pai em relação a sua profissão, o narrador de Balada do Louco não quer saber da opinião alheia, pois “é feliz” e isso basta. Jéssica utiliza diversos signos visuais ligados a um conceito de “loucura”, de estados alterados da mente: a protagonista fala com seu gato Halley, alusão ao felino de Alice no País das Maravilhas; ela aparece em algumas cenas cercada por espelhos, reforçando a ideia de os reflexos formarem seu duplo; tem um pôster da carta “O Louco”, do tarô, no quarto etc. Falta, porém, uma unidade maior entre essas referências, para não parecerem jogadas ao acaso – como no momento da reprodução da pintura A Verdade Saindo do Poço, de Jean-Léon Gérôme. Resultado aquém da capacidade da artista.

Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes
Adaptada por Eloar Guazzelli
O Rio de Janeiro é o Brasil. O suprassumo do brasileiro, de todas as nossas belezas e idiossincrasias, encravado numa baía em meio a praias, ilhas e rochedos. Garota de Ipanema não se tornou atemporal, reconhecida no planeta inteiro, sem motivo – é o cartão-postal sonoro da cidade, reconhecimento de suas maravilhas. Afinal, prestemos atenção: o narrador deprimido (“Ah, por que estou tão sozinho; Ah, por que tudo é tão triste”) se encanta pela menina que vem e que passa justamente pelo fato de ela passar pelo Rio de Janeiro. Fosse na Praia Grande, Uberaba ou Xinguara, a cena não faria o mundo se encher de graça. E impressiona o modo como Eloar Guazzelli captura a essência da música em sua totalidade. A primeira página da HQ tem só uma palavra – a palavra inicial da canção, “olha” –, indicando ao leitor o que deve ser feito: apreciar a formosura carioca, deixá-la encher o espírito. O veterano quadrinista gaúcho, a partir daí, nos guia por vislumbres da natureza, da gente, da subjetividade local. Se, como visto ao final do quadrinho, até o Cristo Redentor cantarola ao ritmo da obra-prima de Tom e Vinícius, quem somos nós para não nos contagiar com sua poesia?

Apenas um Rapaz Latino-Americano, de Belchior
Adaptada por Álvaro Maia
O que Apenas um Rapaz Latino-Americano, de Belchior, e o filme A Morte de um Bookmaker Chinês, do pai do cinema independente norte-americano John Cassavetes, teriam em comum? Tudo, como bem revela a HQ de Álvaro Maia. Só alguém antenado como ele perceberia a semelhança temática, e até estrutural, entre obras de mídias diferentes, mesclando-as para reforçar a mensagem a ser passada. O enredo do gibi gira em torno da boate do protagonista do filme (o personagem Cosmo Vitelli, vivido pelo ator Ben Gazzara), centro dramático de uma noite pintada com cores psicodélicas, à qual um cantor com as feições de Belchior precisa sobreviver. A música torna-se o longa-metragem e vice-versa – afinal, ambos (com seu estilo meio conversado, meio fluxo de pensamento) convergem para a mesma conclusão: a dureza da vida deve sempre ser encarada com dignidade; se for preciso morrer pra não violar os próprios valores morais, que se morra. Há espaço ainda para a inserção de comentários sobre xenofobia, em especial a sofrida por nordestinos migrados para o Sudeste, usando referências de outro filme: o nacional O Baiano Fantasma, de Denoy de Oliveira. Em trinta páginas, Maia constrói um verdadeiro caldeirão cultural delirante.

Evidências, de José Augusto e Paulo Sérgio (interpretada por Chitãozinho & Xororó)
Adaptada por Line Lemos
Segundo o dicionário Michaelis, entre os significados da palavra evidência está “o que prova a existência de algo com certa probabilidade; indício, sinal”. É por esse lado pelo qual vai a canção de José Augusto e Paulo Sérgio, tornada arrasa-quarteirão pela dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó: o narrador relata os vestígios de uma paixão ainda viva para seu antigo amor. Line Lemos mergulha ainda mais nesse sentido do termo, costurando duas tramas. A primeira, no presente, com uma caminhoneira de coração partido que se vê em meio a protestos relacionados ao desaparecimento de um cantor; a segunda, no passado, reconstitui os últimos passos desse artista antes de seu sumiço. Assim como visto em Fessora!, Line se especializou em pensar novas formas para a transição de cenas, algo fundamental em um quadrinho como este, sem texto. Num momento específico, ela usa até mesmo a fusão de imagens, técnica comum no cinema, mas pouco usada nas HQs. A moral é clara: evidências, rastros, indicações não contam a totalidade de uma história – principalmente quando uma delas envolve, inclusive, questões extra-terrenas.

País Tropical, de Jorge Ben Jor
Adaptada por Lila Cruz
À primeira vista, este quadrinho de Lila Cruz parece uma adaptação ruim de País Tropical, a ode à brasilidade composta por Jorge Ben em 1969. A música, solar, canta as belezas da nação num ritmo de festa – impossível não querer dançar ao som dela –, enquanto a HQ mal tem cores, somente tons de cinza, e trata de um romance à beira do rompimento durante quase toda sua duração. Olhando de perto, porém, fica mais fácil cruzar intenções. O casal protagonista, Tereza e Luiza, vive às turras após a primeira anunciar a vontade de mudar de país, gerando indignação na segunda, que se recusa a considerar a ideia de deixar sua cidade querida, Salvador. O Brasil deixa (boas) marcas em quem vive aqui, sejamos realistas. Por isso, a grande pergunta da quadrinista: nós pertencemos ao lugar onde nascemos/crescemos ou esse lugar pertence a nós? Por mais indireta que a adaptação seja, existe aqui um desejo de celebrar, ainda que de um jeito tangencial, as nossas características, aquilo que nenhum outro pedaço de terra no mundo pode substituir.

Adocica, de Beto Barbosa
Adaptada por Gidalti Jr.
O fenômeno musical chamado lambada nasceu no final da década de 1980 no Pará e pegou o Brasil de jeito – até novela da Globo (Rainha da Sucata, mais precisamente) mirou no sucesso do ritmo dançante que mistura carimbó, forró, merengue e cumbia. Beto Barbosa, considerado o “rei” do gênero, estourou com Adocica, som marcante pela repetição do tema inicial em metais e do refrão. Pois Gidalti Jr. se inspira nesse aspecto grudento da canção, cuja letra romântica exagera no açúcar, pra escrever e desenhar um thriller passado em Belém que vai ganhando forma lentamente. O protagonista Beto, colhedor de açaí de meia-idade, tenta a todo custo conquistar a vendedora Judite, até que tal relação ganha novos contornos após ele ganhar um prêmio em dinheiro. Gidalti utiliza a estrutura cíclica de Adocica pra desenvolver o enredo: passa a repetir imagens, situações e onomatopeias, gerando um suspense cada vez mais sufocante. Ao levar às últimas consequências o verbo “adocicar”, Gidalti fecha a antologia com morbidez e humor ácido, brincando com as características básicas das histórias de amor.

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