Mickey em domínio público: 50 anos depois, a vingança da versão underground do rato mais famoso do mundo

O papo cultural da virada de ano não poderia ser outro: em 1º de janeiro, a primeira versão do Mickey Mouse, vista no curta-metragem Steamboat Willie (de 1928), entrou em domínio público, de acordo com a legislação dos Estados Unidos. Esse personagem agora pode ser adaptado, remixado etc. É uma grande derrota para a Walt Disney Company, um monstro corporativo que investe muito dinheiro no lobby para prorrogar o vencimento de leis sobre direitos autorais – além de adorar pisar na cabeça de quem viola a sacralidade de suas criações.

É também uma vitória tardia para uma turma de quadrinistas norte-americanos que ousou encarar o conglomerado no começo da década de 1970, fazendo paródias underground envolvendo Mickey, Donald e afins. Mais de cinquenta anos depois, os Air Pirates Funnies estão vingados.

Piratas do ar
Liderado por Dan O’Neill, o coletivo Air Pirates foi o responsável por lançar dois quadrinhos que geraram uma batalha judicial de quase uma década. O grupo, cujo nome faz referência a vilões de desenhos da Disney dos anos 1930, surge após os amigos Bobby London e Ted Richards conhecerem O’Neill e Shary Flenniken durante a edição de 1970 do festival de música Sky River Rock Festival – Flenniken era a responsável pelo informativo diário do evento, feito em mimeógrafos. A química artística entre o quarteto foi instantânea: ao fim dos onze dias de shows, eles tinham produzido um jornal tabloide de quatro páginas com quadrinhos. Gary Hallgren entraria para o time no início do ano seguinte.

Em uma longa (e essencial) reportagem da revista Reason sobre o imbróglio no qual se meteram com a Disney, Dan O’Neill recorda que o coletivo surgiu em meio ao “fervor revolucionário” daquela época. “Era dever de todos esmagar o estado. E nós o esmagamos bastante – mas eles nos esmagaram de volta. O ponto principal era resistir ao pensamento corporativo. Nós simplesmente não gostávamos desse tipo de besteira”, explica.

Por que, então, não atacar um símbolo perfeito do puritanismo, consumismo e conservadorismo estadunidense, uma empresa presente nas casas de todo cidadão de bem e capaz de fazer a cabeça de crianças ao redor do mundo? A Disney já contava com a reputação de massacrar judicialmente quem usasse seus ativos sem permissão, o que só a fazia um alvo ainda mais saboroso.

Pois, no meio de 1971, o Air Pirates lança duas edições de Air Pirates Funnies, atingindo como bomba nuclear o coração da companhia.

As capas da revista indicavam o conteúdo: a #1 tem Mickey num avião, atirando em inimigos fora de quadro, com um carregamento no qual se lê “dope” (droga)

Sinfonias safadas
Logo de cara, na primeira edição, um pato viciado em pornografia (que só pode ser Donald, dada sua neurose) aparece desenhado à la Krazy Kat na história Dirty Duck; na sequência, é a vez de os insetos da série animada Silly Symphonies participarem de uma trama picante cheia de infidelidades, culminando na formiga protagonista virando escrava sexual; depois, Donald e um cachorro parecido com João Bafo de Onça tentam espiar Minnie enquando ela toma banho e troca de roupa; por fim, Mickey se desespera por não ter ninguém pra fazer sexo (veja a imagem de abertura deste texto), é raptado por vilões junto de Minnie e consegue convencê-la a transar com ele – há, inclusive, uma cena de cunilíngua entre os roedores. Tem espaço também pra uso de ópio, assassinos de aluguel, uma versão de Os Três Porquinhos visualmente igual ao filme de 1933 e por aí vai. Dá pra ler os dois números na íntegra aqui.

A trupe criadora dessa maluquice chegou a morar junta, mergulhando num estado de alucinação artística. Em seu site, Shary Flenniken conta um pouco a experiência: “A verdadeira atração do Air Pirates era a atmosfera nos armazéns ocupados pelo grupo. Os cartunistas ensinavam e aprendiam uns com os outros quase constantemente. Havia pouca comida ou sono. Discutiam política e desenho com a mesma seriedade. Andavam como uma matilha protetora quando saíam pra procurar comida ou um lugar para tomar banho. O’Neill introduziu exercícios de teatro improvisado que adaptou para escrever quadrinhos. Eram testes emocionais, mentais, pra revelar a capacidade do artista de abrir mão de seu ego e participar de um projeto de equipe. Nem todos passaram”. Anos depois, ela usaria esse aprendizado para criar a tira Trots and Bonnie, publicada na tradicional revista de humor National Lampoon.

Num primeiro momento, não houve resposta da Disney a essa provocação. Por isso mesmo, O’Neill fez questão de enviar os gibis a diretores da empresa, para ter a certeza de que ficariam a par da iniciativa. “Por que brigar se ninguém vem?”, indagou o artista na matéria da Reason.

A mão pesada da lei
E a Disney veio: processou o coletivo por violação de direitos autorais, violação de marca registrada, concorrência desleal, interferência intencional nos negócios e depreciação comercial por meio do uso indevido de personagens. Como indenização, foram solicitados todo o lucro das revistas, cinco mil dólares por cada violação de direitos autorais, danos triplos pela violação de marca registrada, multa de cem mil dólares para cada réu e a entrega da tiragem restante dos quadrinhos, além do reembolso dos honorários advocatícios.

A companhia afirmou que, por meio de “grande esforço e dinheiro”, criou personagens cuja “imagem inocente é conhecida e amada por pessoas de todo o mundo, especialmente crianças”. Os réus teriam atuado para “depreciar e ridicularizar” esse trabalho, ameaçando a “viabilidade dos negócios”. É risível conceber a ideia de artistas independentes destruindo as atividades de uma multinacional com tentáculos em diversos segmentos. Estima-se que a Disney gastou cerca de dois milhões de dólares em serviços de advogados – as indenizações nem chegariam perto de cobrir o montante.

Era claro, portanto, seu objetivo: não somente vencer o caso, mas esmagar o Air Pirates a ponto de desestimular outras criações do tipo. Pura tentativa de cercear a liberdade artística e de expressão. Vale lembrar que a revista era voltada para um nicho de público (adultos, universitários), vendida em locais especializados (head shops, lojas de música) e fazia sátira/paródia de personagens da cultura popular (como tanto já se havia feito nas HQs underground ou mesmo na MAD, um veículo de massa, ou na televisão). Não havia motivo para uma ação tão forte contra quadrinistas que mal tinham onde morar.

O julgamento se arrastou ao longo da década. Mesmo apelando para a proteção da Primeira Emenda da Constituição Americana, a que trata sobre liberdade de expressão, o coletivo foi considerado culpado por violação de direitos autorais em setembro de 1978.

No ano seguinte, quando a Disney estava prestes a retirar as demais ações contra o grupo – afinal de contas, seu recado havia sido dado com contundência – , O’Neill publicou outra história com Mickey, Minnie etc., chamada Communique #1 From the M.L.F. (Mouse Liberation Front). Nela, os próprios personagens se dirigem à empresa, defendendo o direito de serem parodiados e solicitando o fim dos processos. A dona do rato mais famoso do mundo não gostou nada, pedindo até mesmo a responsabilização penal dos envolvidos.

Felizmente, as coisas se acalmaram a partir daí. A causa de O’Neill ganhou bastante espaço na imprensa, principalmente com a realização de uma exposição em Nova York, Filadélfia e San Diego, contendo desenhos de diversos artistas . Em 1980, encerrou-se o caso, com a Disney retirando as ações restantes, após a garantia de que O’Neill e os demais piratas jamais desenhassem o Mickey novamente.

Com Steamboat Willie em domínio público, chegou a hora da desforra. É importante ficar atento, pois os advogados da companhia com certeza estarão babando, a postos para encontrarem usos “abusivos” e furos na lei – no Brasil, por exemplo, a legislação sobre direitos autorais funciona com prazos diferentes. Esperamos que nunca mais um rato seja motivo para perseguição jurídica. QR

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