A força dos rostos em “Mukanda Tiodora”, de Marcelo D’Salete

São poucos os autores que, como Marcelo D’Salete, conseguem imaginar toda uma tapeçaria dramática ao redor de fatos históricos. Ele já fizera isso com maestria no incontornável Angola Janga e repete a proeza em Mukanda Tiodora, HQ recém-lançada pela Veneta.

A Tiodora do título é Teodora Dias da Cunha, mulher africana escravizada, de origem provavelmente angolana ou congolesa, que viveu na São Paulo do século 19. Com ajuda de Claro Antonio dos Santos, homem alfabetizado e também escravizado, ela preparou cartas destinadas ao marido, filho e a autoridades. Sua principal meta era conseguir a alforria para reencontrar a família. Nas missivas, Tiodora expõe sonhos e desejos, fala sobre religião, comenta indiretamente detalhes da sociedade de então.

Esse conteúdo, um mero relato pessoal de 150 anos atrás, hoje transformou-se em verdadeiro documento a respeito da ligação entre a região de São Paulo, a escravidão e o começo da modernização do Brasil. Mais importante ainda, traz humanidade à figura do escravizado, historicamente colocado de lado quando se estuda o País.

Capa da edição da Veneta

Mas existe um fato determinante nessa história toda: tais cartas jamais foram enviadas. Claro virou suspeito de um roubo e elas acabaram apreendidas pela polícia – depois disso, não se tem outros registros de Tiodora. Não se sabe, portanto, qual o desfecho de sua busca.

Aí entra D’Salete. O quadrinista desenvolve uma resolução para essa trama perdida no tempo. Costurando os parcos dados oficiais a uma ficção potente, capaz de pensar as relações sociais e humanas do período, a obra vai esquentando aos poucos até chegar a um terceiro ato que amarra todas as subtramas e temas abordados. E muito dessa potência vem do modo como são apresentados os rostos dos personagens.

Close-ups são expedientes bastante utilizados por D’Salete, com diferentes propósitos dependendo da obra. Em Noite Luz e Encruzilhada, oferecem uma sensação de claustrofobia aos enredos, passados na periferia da cidade grande. Em Angola Janga, criam intimidade entre leitor e as pessoas retratadas, sendo uma espécie de contraponto ao roteiro de escopo amplo e épico. Porém, em Mukanda Tiodora, sente-se mais o impacto dramático desse tipo de enquadramento. Estudar esses rostos revela as verdades por trás de cada um.

As marcas nas peles, as rugas e pintas, os pelos e as cicatrizes dizem mais que as palavras proferidas. Em um mundo de dominação, de coerção, um olhar basta para expressar o que mora no coração. Obviamente, um close por si só não explica muita coisa: é a sua relação com o restante da página a responsável por trazer sentido. Por isso mesmo, impossível olhar para esse gibi e não se lembrar de um dos maiores filmes já feitos, cujo elemento visual mais importante são justamente as faces.

A Paixão de Joana D’Arc, do cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer, completará um século de vida daqui alguns anos, em 2028 – e ainda está para ser filmado algo tão profundo em relação aos sentimentos gerados no espectador. Dreyer aproxima sua câmera o máximo possível dos rostos do elenco, principalmente do de Maria Falconetti, a atriz francesa que encarna a jovem santa guerreira, morta nas fogueiras da Inquisição. Sua atuação tem um quê de indecifrável, alcançando emoções nunca antes vistas numa tela (e talvez nunca repetidas): a dor física e existencial da tortura, a angústia de um julgamento injusto, a desesperança causada pela razão distorcida dos homens, a morte pela fé. Viver esse papel de forma intensa foi extenuante: ela ficou à beira de um colapso nervoso, em grande parte pelo modo insensível de direção de Dreyer, e não voltou a fazer cinema.

No filme, os closes vão além do papel de deixar a cara dos personagens em evidência. As pessoas são mostradas de cima para baixo (ou vice-versa); atores se posicionam num canto da tela, com todo o resto preenchido por espaço negativo; pedaços da cabeça deles ficam fora do quadro; novos significados são produzidos pela montagem, ao intercalar os rostos com planos gerais e panos detalhes. Veja neste vídeo um pequeno exemplo: são várias as subversões dessa técnica por Dreyer – e D’Salete vai pelo mesmo caminho.

A semelhança (visual, simbólica ou temática) entre as duas obras impressiona, confira abaixo. Não à toa: Tiodora e Joana D’Arc são pessoas, cada uma a seu modo e dentro de seu contexto, colocando-se contra a tirania, a opressão e a coisificação do ser humano.

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