Há uma técnica no cinema chamada raccord (conexão, em francês), que representa a continuidade temporária ou espacial entre duas imagens seguidas. Exemplo bem básico e aleatório: um personagem pega uma caneca; corta para outro ângulo, ele está levando a caneca à boca. A ação foi dividida em dois planos diferentes, mas manteve sua coerência, sem confundir o espectador. É possível fazer várias coisas criativas a partir disso, como este vídeo mostra bem, incluindo ligar cenas diferentes a partir de movimentos, sons, deslocamentos de câmera.
E dá pra aplicar isso nos quadrinhos? O gibi mais recente da mineira Aline Lemos, Fessora!, lançado no final de 2021, adapta a técnica para o papel, gerando mobilidade e fluidez entre sequências distintas, porém ligadas tematicamente.
No livro, a artista conta suas desventuras reais enquanto professora novata numa escola pública. Dramas diários, alívios cômicos e debates sérios sobre questões sociais com os alunos se misturam nessa ode miúda à importância da educação, ao papel do docente como elemento forjador da cidadania. O estilo narrativo usado por Aline aqui difere bastante do de seu trabalho anterior, Fogo Fato: os labirintos visuais daquela HQ dão lugar a uma linearidade próxima à de um diário, o que combina com o caráter episódico de Fessora!.
Em um desses episódios, uma turba de alunos faz uma bagunça homérica pelos corredores – e a pobre coitada só queria finalizar uma gincana de perguntas e respostas… Assim é mostrada a situação:


A cena é tão bem construída que a referência a O Grito, de Edvard Munch, quase passa batida. Tem o alívio em perceber que o caos externo aparentemente fora controlado; a desilusão ao ver que agora eram seus alunos a cair na balbúrdia; um close da professora preparando a bronca; o berro pra todos calarem a boca.
Mas a real jogada de mestre está na página branca com apenas um quadro, solução pensada em conjunto com o editor Gabriel Nascimento. Nela, em primeiríssimo plano, a boca segue gritando. Na página seguinte, a mesma imagem e onomatopeia se transformam em outra coisa: o exame médico pra olhar a garganta estropiada de tanto esforço.

A graça de ler gibi tá aí: encontrar pequenos momentos de genialidade que levam a mídia para a frente.
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