“Cresci com os gibis da EC Comics antes do Comics Code, quando eles eram bem violentos. Havia muito sangue, e eram basicamente contos morais sem nenhuma censura. Os bandidos sempre recebiam seu castigo e se celebrava o horror. E eu ficava lá sentado, rindo daquelas coisas“
George A. Romero, em entrevista durante o festival Bloor Cinema, em 2007, no Canadá
Simples quadrinhos de terror teriam o poder para influenciar, de forma decisiva, a obra de um dos principais diretores independentes norte-americanos? Sim, se as revistas forem as publicadas pela EC Comics nos anos 1950, e se o cineasta em questão for George A. Romero, o “pai” dos filmes de zumbi como os conhecemos atualmente.
Bill Gaines was right
A lendária editora nasceu como Educational Comics, lançando adaptações da bíblia em HQ. Quando morre o fundador Max Gaines, em 1947, quem assume o comando é seu filho, William “Bill” Gaines, responsável por dar uma nova cara à empresa. Muda o nome para Entertaining Comics, junta sob o mesmo teto a mais talentosa geração de quadrinistas que os EUA já viram (Harvey Kurtzman, Wally Wood, Bernie Krigstein, Marie Severin etc.) e passa a apostar em histórias de gênero, como horror, suspense e ficção científica, sem qualquer escrúpulo. Tinha esposa matando marido, cabeças decapitadas, corpos cortados ao meio… Mais parecia uma vingança do jovem Bill para com o violento pai.
Esse estilo sensacionalista fazia os títulos da casa venderem aos montes, o que chamou a atenção de puritanos. O mais perigoso deles: o psiquiatra Fredric Wertham, autor do bombástico Sedução do Inocente, de 1954, livro no qual denunciava o papel catalisador dos quadrinhos na “delinquência infanto-juvenil” – seja lá o que isso significava. A perseguição foi enorme, e Bill chegou a depor num comitê do senado para dar “explicações”. Editoras se juntaram, então, e criaram o Comics Code Authority, órgão autorregulador do mercado (termo mais leve para autocensura). A EC sofreu um baque irreversível e, ao final daquela década, o foco de seus negócios já era outro – a revista de humor Mad.
É possível afirmar que sua fase de ouro (a época de antologias como Tales From the Crypt, The Vault of Horror, The Haunt of Fear, Weird Science e Schock SuspenStories) transformou a indústria americana para sempre. No meio dessas histórias de crime e fantasia, houve espaço para se introduzir questões sociais. Reflexões sobre racismo, violência policial, divisão de classes, machismo e os impactos psicológicos da guerra chegaram a milhares de leitores adolescentes e jovem adultos. Além disso, os desenhos ganharam dinamismo e relevância narrativa: não serviam mais para ilustrar o texto; agora, portavam-se como componente independente, enriquecendo as palavras e oferecendo ritmo aos enredos.
E a força dessas páginas encontraram ressonância num Romero ainda menino, fato que mais tarde o ajudaria a mudar – também para sempre – o cinema e a cultura pop como um todo.
Mortos que caminham
A figura do morto-vivo existe há tempos. Faz parte do vodu haitiano, segundo o qual uma pessoa falecida pode voltar à vida por meio de feitiços, permanecendo sob o controle daquele que a reviveu. Na literatura, H. P. Lovecraft imaginou um soro reanimador de cadáveres no conto Herbert West – Reanimator. No cinema, Zumbi Branco, de Victor Halperin, foi o primeiro longa-metragem de sucesso a dar protagonismo ao conceito, em 1932. Acontece que a maioria das obras antigas a tocar no assunto usava o zumbi no contexto do vodu, ou de outras religiões de matrizes africanas. Ou seja, seu aparecimento estava ligado à ação humana direta.
Os gibis da EC também mostravam esses seres, como nos exemplos abaixo.
Porém, novamente, não se encaixavam na ideia de serem comedores de carne humana e atacarem em grupo – a imagem gravada no imaginário popular quando se pensa nessas criaturas. Isso só aconteceria em 1968.
Quando não houver mais espaço no inferno…
O “zumbi moderno”, com as características acima, surge em A Noite dos Mortos-Vivos, filme de estreia de Romero. Um casal de irmãos visita um cemitério em cidade do interior e é atacado por pessoas bizarras. Sem entender o que acontece, a garota se refugia numa casa das redondezas. Mais e mais desses andarilhos sedentos por sangue aparecem, enquanto outros sobreviventes fazem planos para suportar o cerco.
A obra é uma colagem de várias referências do autor – uma delas é a sensação de fim da sociedade, de apocalipse irrefreável, presente em Eu Sou a Lenda, livro de Richard Matheson, de 1954. O roteiro até explica, rocambolescamente, por que os mortos se levantam: a culpa é da radiação liberada pela explosão de uma sonda espacial (?). No entanto, fica uma sensação de inevitabilidade. Parece que os zumbis simplesmente passam a existir, como se fossem uma força da natureza ou mesmo o próximo estágio da evolução humana. Traços de comportamento dos mortos-vivos da velha guarda são usados, só que a influência mais forte, no tom e na estética, é mesmo a exercida pela EC.
“Acho que de certa forma fiz isso, usar técnicas de quadrinhos nos filmes. O jeito mais fácil de filmar uma cena, com três pessoas falando, você pega um close de cada uma e depois, na sala de edição, pode encurtar o roteiro ou estendê-lo. Pode fazer o que quiser em vez de só filmar planos gerais. E eu não queria apenas um plano geral. E parte disso veio dos quadrinhos. Fui capaz de adquirir um tipo de percepção com eles sobre quando cortar a seco e quando fazer outros cortes“
George A. Romero, na mesma entrevista durante o Bloor Cinema
De forma consciente ou não, o diretor emula temas visuais e enquadramentos daqueles gibis:
Tem mais: o roteiro de A Noite dos Mortos-Vivos pega emprestado vários elementos de uma história específica. Publicada em Vault Of Horror #35 e escrita/desenhada pelo inigualável Johnny Craig, And All Through The House tem uma mulher presa numa casa, sendo rodeada por um perigo querendo entrar a qualquer custo. Pois vejamos:
Isso sem falar que, ao final, tudo acaba mal pra todos os ocupantes.
Bem no meio dos olhos
Apesar da semelhança visual, o subtexto político acaba sendo o maior legado da editora de Bill Gaines para Romero. O cineasta já afirmou inúmeras vezes que não tinha intenção de transformar A Noite dos Mortos-Vivos em obra engajada, queria apenas um “terror com moral no fim”. Mas uma obra não é apenas a intenção do autor. E o filme, na prática, transborda questões sociais relacionadas ao racismo e à posição do negro na sociedade americana.
Aquela garota branca que se refugia na casa parece ser a protagonista. Só que quando entra em cena o ator Duane Jones, seu personagem Ben vira o centro de gravidade da trama. Considerado o primeiro protagonista negro em um filme de terror norte-americano, ele é um arquétipo do herói clássico – ajuda a mocinha, faz escolhas racionais e se preocupa com o bem-estar dos demais (todos brancos, aliás). Contudo, alguns não parecem à vontade com sua posição de liderança: o homem mais velho faz transparecer o desgosto de acatar as decisões de alguém mais jovem, mais forte, mais capaz – e negro. O próprio Ben se mostra hesitante em certos momentos, como se entendesse a simbologia do que ocorre.
No mundo real, os EUA viviam o auge dos movimentos civis pelos direitos da população negra. Nos anos anteriores, Malcolm X fora assassinado, acontecera a marcha de Selma a Montgomery. E, pouco depois da finalização das filmagens e edição do longa-metragem, um supremacista matou o reverendo Martin Luther King. Então, lá estava Romero, pronto pra lançar uma obra racialmente carregada (mesmo “sem querer”), na qual o final faz clara alusão ao período em que homens afrodescendentes eram linchados impiedosamente por hordas de brancos.
O filme virou sucesso imediato, faturou centenas de vezes o minúsculo orçamento inicial e abriu caminho pra maior diversidade no cinema de gênero. Até ali, só existia protagonismo negro quando a história era claramente sobre racismo – vide o drama vencedor do Oscar de melhor filme um ano antes, No Calor da Noite. O trabalho de Romero ajudou a enegrecer o terror, dando evidência a atores e também a cineastas, vide Bill Gunn (diretor do cult Ganja & Hess) e o contemporâneo Jordan Peele (Corra! e Nós).
Cruz queimada
Voltando à EC, discriminação racial já tinha sido tema de duas de suas mais famosas histórias – bem provável que, fã como era, Romero tenha tido contato com ambas, vide a grande comoção provocada pelas publicações. Judgment Day (Weird Fantasy #18, março de 1953), escrita pelo editor Al Feldstein e desenhada por Joe Orlando, conta a aventura de um representante terráqueo da República Galática em visita a um planeta-robô. Ao chegar, depara-se com um sistema de castas, em que as máquinas laranjas subjugam as azuis, apesar de construídas com os mesmos componentes eletrônicos – a diferença entre elas: somente a cor externa. O último quadro da página final enfim revela o rosto do astronauta, desapontado com a situação encontrada, indo embora em sua nave. Ele é negro.
No começo de 1956, uma polêmica com o Comics Code: Judgment Day seria republicada na Incredible Science Fiction #33, mas o órgão ordenou que o astronauta fosse recolorido, virasse branco. Gaines ficou revoltado e ameaçou processar a entidade, que cedeu. Isso ocorreu pouco antes de a editora abandonar as HQs e concentrar esforços na Mad – estava claro que não os deixariam trabalhar em paz.
Blood Brothers (Shock SuspenStories #13, fevereiro de 1954), com arte de Wally Wood, denuncia o intolerante. Um supremacista branco passa a molestar psicologicamente o vizinho, cuja avó é afrodescendente, só para descobrir mais tarde que o sangue de um doador negro salvou-lhe a vida quando criança.
Esse é outro ponto de convergência entre o diretor e as HQs – trazer o cidadão comum pra protagonizar enredos de horror. Grosso modo, a maior parte das obras anteriores do gênero podia ser dividida em duas categorias: de época ou com personagens aristocratas (cientistas, nobres, herdeiros, empreendedores etc.). A EC, por outro lado, abraçou o conceito de escritores como Matheson, Ray Bradbury e Charles Beaumont, para quem o terror é mais assustador quando envolve figuras que o leitor encontra no dia a dia, incluindo em suas páginas esposas enganadas, maridos entediados, pequenos golpistas e assalariados de classe média baixa. Vale lembrar que vários contos desses autores foram adaptados por Feldstein e cia.
Romero também segue essa trilha. A Noite dos Mortos-Vivos reúne pessoas que passavam por ali, sem grandes habilidades ou aparentes riquezas; uma dona de casa se vê envolvida com magia em A Estação da Bruxa (1972); O Exército do Extermínio (1973) se passa numa cidadezinha pequena; o vampiro de Martin (1977) mais parece um adolescente junkie com problemas familiares.
O gore ganha papel importante nesse sentido, pois amplifica o incômodo do público (basta lembrar os motivos da perseguição contra a editora). A partir de A Noite dos Mortos-Vivos, o cinema se tornou mais explícito. Cenas como zumbis comendo carne humana ou closes em cadáveres putrefatos jamais haviam sido vistos na tela grande com tamanha realidade.
…os mortos caminharão sobre a Terra
Tem ainda Creepshow – Show de Horrores, parceria do diretor com o escritor Stephen King, responsável pelo roteiro. Mas esse caso é mais óbvio: o projeto foi pensado como homenagem direta aos materiais da EC. Até a estrutura do filme, dividido em cinco partes, remete às histórias curtas daqueles títulos.
Utilizando a base narrativa/estética oferecida por esses quadrinhos históricos, Romero fez muito: revolucionou o cinema de terror; impulsionou uma cena de filmes trash de baixo orçamento, que mais tarde geraria nomes do porte de Sam Raimi e Peter Jackson; criou a experiência definitiva de horror social em Despertar dos Mortos (1978); e revitalizou o zumbi para as gerações posteriores, fazendo-o um símbolo da cultura pop nas últimas décadas (que o diga Robert Kirkman e seu arrasa-quarteirão The Walking Dead). Bendita seja a Entertaining Comics.
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