Personagens com formas simples, sem expressão, envolvidos em discussões mundanas sobre livros, arte e ciência, sempre com um humor sarcástico que mistura alta e baixa cultura, literatura chique com ficção científica barata.
Os leitores dos jornais Guardian e New York Times e da revista New Scientist estão acostumados a ver, quase semanalmente, essa salada deliciosa feita pelo escocês Tom Gauld. No Brasil, nenhum livro dele foi publicado, somente tiras na revista piauí – mas, com o mercado aquecido por aqui, isso deve mudar: o artista é fácil um dos principais cartunistas do mundo atualmente. Por isso, precisamos falar sobre Tom Gauld.
(Atualização em junho de 2019: finalmente, temos um álbum do Tom Gauld em português. A Todavia lançou este mês Golias!)

Tom Gauld por ele mesmo
A terceira via das tiras
Generalizando bastante, dá pra dizer que existem dois tipos de cartunistas: aquele com personagens fixos contando histórias ao redor deles (Bill Watterson, Charles Schultz, Jim Davis) e o voltado para comentários políticos sobre a sociedade (Bruno Maron, Ricardo Coimbra). Alguns até transitam entre os dois modelos (Angeli, Laerte). Gauld, no entanto, tem um trabalho tão único a ponto de não se encaixar em nenhum.
As pautas do noticiário dificilmente são temas para ele. Prefere fazer graça em outro campo, o da leitura. Suas tiras abordam “questões literárias”: o processo de escrever ou editar uma obra, escritores renomados e personagens clássicos, clichês de gêneros, a maleabilidade da língua em tempos de Internet etc.
Vê-se então James Joyce ao lado de robôs futuristas tirados do sci-fi mais fuleiro; as irmãs Brontë em videogames; protagonistas de épicos preocupados se a adaptação para a TV das obras das quais participam será fiel ao material original. O erudito e o popular são duas faces da mesma moeda – e é possível rir de ambos.
Abaixo, uma amostra da anarquia cultural criada por Gauld (clique nas artes para vê-las em tamanho maior).
- História curta -Você irá publicar minhas histórias curtas? -Não. Fim
- Minha biblioteca: lido; pretendo ler; lido pela metade; finjo que li; esperando para quando tiver mais tempo; nunca vou ler; apenas para mostrar; lido, mas não lembro nada a respeito; desejaria não ter lido
- Um raio-x da minha mala: leitura do feriado; mais leitura do feriado; leitura de reserva do feriado; leitura de emergência do feriado; outros livros que não consegui resistir em trazer; roupas etc.
- “Tubarão” – possibilidades de remakes: um tubarão maior; no espaço; ao contrário; colegas; existencial
- -Vocês todos têm inveja do meu foguete. Ficção científica – Literatura de verdade
- “A ética da guerra”
- Cozinhando com Kafka – esta semana: bolo de limão com cobertura açucarada. -Eu tenho o verdadeiro sentimento de mim mesmo somente quando estou insuportavelmente infeliz. -Morrer seria simplesmente render-se para o nada, sendo nada. -O sentido da vida é que ela acaba. Próxima semana: torta de banana com doce de leite!
- O rato, o pássaro e o livro difícil (Ulysses, Joyce) -Você não deveria estar juntando comida pro inverno? -Quando eu acabar isso…
- Instituto de neologismos; Departamento da língua cotidiana; Sociedade para a preservação de terminologias antiquadas; Cemitério das palavras esquecidas
- -Como está a batalha? -Nada boa, meu senhor… -Os arcos e canhões do inimigo estão dizimando nossa infantaria. Nesse ritmo, nós estaremos completamente derrotados antes do dia acabar. -Eles me deixam sem escolha… -Libertem as imprecisões históricas!
- Poesia por escandinavos canhotos; Livros de receita por ateístas donos de cachorros; Suspenses por escritores barbudos menores que 1,70 de altura; Contos por celebridades divorciadas; Eróticos por autores com alergia a nozes
- Meus futuros livros de história contrafactual: Império Romano 1969; Dinossauros da Segunda Guerra Mundial; Corretor de ações da era do gelo
Dois livros lançados pela Drawn + Quarterly compilam parte do material feito para jornais e revistas: You’re All Just Jealous of My Jetpack (de 2013) e Baking With Kafka (2017).
Narrador do mundano
Mas nem só de tiras vive Gauld. O autor já se mostrou um brilhante narrador silencioso em duas graphic novels: Goliath (de 2012) e Mooncop (2016).
A primeira reconta a história bíblica de Davi e Golias a partir do ponto de vista do gigante – que, nessa versão, era apenas um funcionário administrativo, e pacifista, trabalhando para o rei dos filisteus. Duas características já aparecem nessa obra: o humor melancólico (que junta gags visuais com questões existenciais) e cenas sem diálogo.
O quadrinho seguinte é uma pequena pérola sobre solidão. O título faz alusão a um policial lunar (cujo nome não é revelado), membro da força responsável por manter a ordem em nosso satélite natural. Só existe um problema: não existem crimes para serem resolvidos na Lua. Como se isso não bastasse, a maioria das pessoas está voltando para a Terra – e o protagonista precisa ficar em um lugar sem nada pra fazer.
Em meras noventa e poucas páginas, Gauld analisa o impacto negativo causado pelo isolamento e também a importância do contato com o outro. Nós, humanos, temos a tendência de não olhar com ternura para as pequenas coisas boas da vida. Apesar dos momentos ruins, sempre existe uma forma de se escapar da rotina maçante.

Capa de Mooncop, publicação da Drawn & Quarterly
Mais histórias e ilustrações
Em 2017, o artista ilustrou uma história real de um morador de Nova York publicada num suplemento de quadrinhos do New York Times. Clique abaixo para lê-la na íntegra.
Ele também faz ilustrações para outros veículos de peso – como essa capa para uma edição da New Yorker de dezembro passado. Incrível como todo um contexto pode ser comprimido em uma única imagem, praticamente contando uma história sem necessitar de outras ferramentas narrativas.
Pra finalizar esse passeio por sua carreira, vale mencionar um projeto experimental lançado em 2015, chamado Endless Journey, que mostra o tamanho da inventividade desse rapaz. Trata-se de um myriorama, invenção francesa do século 19 que consiste numa coleção de cards a serem colocados na ordem em que se quiser para formar diferentes imagens.
A série feita por Gauld homenageia as obras do escritor irlandês Laurence Sterne. Com os doze cards da coleção, é possível criar 479.001.600 imagens. Se alguém conseguir checar se o número está correto, me avise, por favor.

Alguns cards de Endless Journey
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