Gianni De Luca e a página como palco de teatro

A sensação de descobrir um mestre pouco conhecido é maravilhosa. E Gianni De Luca é exatamente isso: um gigante da arte que passa despercebido pelo grande público leitor. Numa lista rápida de quadrinistas italianos, feita de cabeça, ele provavelmente não seria lembrado. Uma pena, pois seu estilo abre possibilidades enormes para a mídia – tanto, que tem seguidores até hoje.

Na série policial Commissario Spada, ele ainda segue uma forma, digamos, mais ortodoxa de composição. Divide a página em quadros, embora em alguns momentos já desenhe os personagens repetidas vezes para emular o movimento deles pelo cenário.

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O melhor efeito de névoa nas HQs mundiais. Georges Seurat, pintor pioneiro do pontilhismo, ficaria orgulhoso

 

Mas é na adaptação de três obras de Shakespeare – Romeu e Julieta, Hamlet e A Tempestade – que De Luca alcança algo realmente único. A partir dessa trilogia, a característica mais óbvia de seu trabalho passa a ser a página dupla como unidade narrativa básica. Os quadros são abolidos: a ação se torna livre, sem barreiras.

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Romeu pula o muro da casa de Julieta, no lado esquerdo superior da página esquerda, e atravessa todo o jardim para encontrar a amada. Ela também se mexe, saindo do quarto (no alto da página direita) para aparecer na sacada. Uma cena banal que ganha dinamismo ao se retirar os quadros

 

A decupagem (divisão do roteiro em sequências e planos) se faz “em tempo real”, enquanto os personagens andam pra lá e pra cá. De um plano geral se passa a um close, depois se vai para um plano americano etc. Se fosse cinema, seriam longos planos-sequência. Mas a melhor comparação está no teatro: a página atua como palco. A cada cena, o cenário muda, sendo elemento-chave para a interação com os atores de papel.

Com isso tudo, o tempo das cenas não flui como num quadrinho comum. Em vários momentos, personagens em lados opostos do cenário, fazendo coisas simultaneamente, se encontram em algum ponto da página. De Luca subverte a estrutura básica de uma HQ: sem quadros para controlar a sequência de ações, cria-se um fluxo temporal maleável.

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Esta sequência mostra perfeitamente como a página se torna uma espécie de palco de teatro: o personagem de verde entra e sai de cena, como se fosse um coadjuvante de uma peça, enquanto as outras duas pessoas interagem com o cenário, fazendo dele um aspecto vivo da história – De Luca foi estudante de arquitetura, por isso o cuidado detalhista ao desenhar edifícios
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Close, plano americano, plano geral, tudo em sequência, sem cortes: o desenrolar da narrativa se dá na frente dos olhos do leitor, ao mesmo tempo em que se lê a obra
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A Tempestade: da grandiosidade do cenário, passamos para a intimidade de uma conversa
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Múltiplas linhas temporais na mesma página. São três momentos aqui: Romeu desce a rua e quebra o túmulo dos Capuleto (página esquerda); ao mesmo tempo, o conde Páris anda ali por perto e se depara com o ato de vandalismo (página direita); por fim, tem ainda o rapaz que vinha com Páris e sai do local para buscar ajuda (canto superior da página direita)

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Mas, alguém pode se perguntar, de que adiantou aperfeiçoar um jeito único de contar histórias se ninguém mais o utilizou? Ledo engano… Tem o dedo de De Luca em obras de outros grandes artistas, como:

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Frank Miller, em Elektra Vive;
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J.H. Williams III, em Promethea;
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e até mesmo em gibis que estão saindo atualmente, como é o caso da série quinzenal do Batman. O espanhol Mikel Janin já aplicou a técnica nesta luta da edição 12…
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…e aqui, na edição 26, com ações acontecendo em primeiro e segundo plano. O mestre italiano ficaria orgulhoso se estivesse vivo.

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4 respostas para “Gianni De Luca e a página como palco de teatro”.

  1. muito bem lembrado. esse cara é maravilhoso. só discordo um pouco de ti: os quadros ainda existem, o que não tem é a delimitação de requadro

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    1. Pior que é isso mesmo, Lielson. Sem a limitação do requadro, tudo parece mais vivo, né. Mas os quadros escondidos lá sim.

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      1. Ola, vc tem esse livro?

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      2. É difícil de achar, mas dê uma olhada em sebos online. Tem uma edição nacional da Civilização Brasileira lançada nos anos 1970.

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