Al Williamson, Scott McCloud e uma aula básica para criar quadros perfeitos

Bons roteiros podem salvar artes medíocres, assim como ótimos desenhos talvez compensem histórias fracas. Mas quase nada no mundo salva um quadrinho que não sabe narrar a passagem do tempo de forma consistente – e não estou falando do uso daqueles recordatórios básicos do tipo “três dias depois”.

A ideia para este texto surgiu quando eu folheava a edição da EC Comics Library dedicada ao Al Williamson, 50 Girls 50 and Other Stories (aliás, essa série de livros da Fantagraphics que resgata a história da EC é uma benção divina). Logo no primeiro conto, isso aqui me chamou a atenção:

williamson_ec

Em apenas um quadro, Williamson reuniu três tempos distintos:
-O homem à esquerda comenta sobre um corpo encontrado na floresta…
-…quando é interrompido por alguém procurando o xerife,…
-…que levanta da cadeira imediatamente para atender ao rapaz.

Solução elegante do artista, pois, além de ganhar espaço na página – o óbvio seria quebrar a sequência em mais quadros -, consegue reproduzir a urgência do momento, mostrando os fatos de forma ininterrupta, quase em tempo real. Mal comparando com o cinema, essa técnica seria como um plano-sequência – aquele tipo de cena sem cortes, encenada de uma única vez.

Agora, algum leitor poderia estar confuso: mas a gramática das HQs não ensina que cada quadro representa um único momento? Como explica o teórico Scott McCloud em seu clássico Desvendando os Quadrinhos: nem sempre.

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Em uma fotografia, não há dúvida: o que está registrado representa apenas um instante. No entanto, o tempo nos quadrinhos é muito mais complexo. McCloud usa o desenho acima para explicar a questão. Apesar de todos os personagens dividirem o mesmo espaço, cada um ocupa uma fenda distinta no tempo. É o movimento dos olhos do leitor (da esquerda para direita, de cima para baixo) que define a sequência de ações, iniciada quando o tal tio Henry se prepara para disparar o flash.

A cena poderia ser diferente, como podemos ver abaixo. Bastava separar cada momento em quadros individuais.

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Claro que, assim, todo o dinamismo se perde. Modular o tempo da narrativa é o segredo para se criar uma leitura fluída.

No fim, o instinto artístico de Williamson e a teoria de McCloud se tornam magia quando um Marcos Martin da vida cria uma página dupla como a presente em Demolidor #1 (Vol. 3). Por um mundo com mais narrativas envolventes como essa.

DD_paolorivera

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3 respostas para “Al Williamson, Scott McCloud e uma aula básica para criar quadros perfeitos”.

  1. O desenhista dessa página dupla do Demolidor é o Marcos Martin. 🙂

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    1. Que prazer tê-lo aqui, Vitor!

      Pois é, já tinha ficado na dúvida quando escrevi o texto. Como o desenhista do #1 é o Rivera, achei que ele também tinha feito essa história backup. Thanks!!

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  2. […] Sério, volte e compare o incomparável. A narrativa de Bernard parece uns trinta anos, no mínimo, à frente dos demais. Hoje, é usual encontrar revistas com diagramações parecidas – ou ainda mais fragmentadas. À época, não existia nada igual. E a chave para entender a mudança está na manipulação do tempo (já falei sobre isso, abordando outro ângulo do assunto, aqui). […]

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