Ainda existe, em pleno 2015, quem olhe torto para os quadrinhos. Coisa de criança, o clichê do clichê etc. Como escreveu o autor e teórico das HQs Scott McCloud, “o primeiro passo é limpar nossas mentes de todas as noções pré-concebidas sobre quadrinhos. Só começando a partir do zero, podemos descobrir as possibilidades que oferecem. Pra isso, é preciso separar a forma de seu conteúdo às vezes inconsistente”.
Textos sobre quadrinhos enquanto mídia têm aos montes por aí. Gosto desse antigo do escritor e roteirista Guilheme Smee. O jornalista e tradutor Érico Assis também possui propriedade e conhecimento para falar do assunto aqui e aqui. Mesmo assim, humildemente, quero tratar do tema. Até para me situar a respeito dos caminhos desse meu novo projeto.
A coisa mais fácil do mundo é querer comparar quadrinhos à literatura. Errado. O roteiro de quadrinho até pode ser literatura se forçarmos um pouquinho, com os detalhes arquitetônicos dos prédios a serem desenhados, suas observações a respeito das feições dos personagens etc.; o produto final, não. Embora até use técnicas narrativas semelhantes, como monólogos interiores, a principal diferença está na descrição: a imagem já mostra tudo, não precisa ser explicada. Nunca teremos o texto observador e detalhista de um Truman Capote em uma HQ.
O poder do desenho é enorme, já que suporta qualquer ideia. Não à toa, com o crescimento da popularidade dos quadrinhos, e também da qualidade dos efeitos especiais no cinema, a ficção científica perdeu espaço como gênero literário. Onde estão os novos Philip K. Dick, Isaac Asimov? Não existem. Ou melhor, trabalham para outras mídias. Um mundo futurista, cyberpunk ou alienígena fica mais irresistível nos traços de um Frank Quitely ou Jim Steranko – ou então na tela grande de um Imax 3D. Por outro lado, as melhores artes, roteiros e orçamentos não conseguem mergulhar psicologicamente em um personagem como num bom livro. Perde-se aqui, ganha-se ali.
Falando em filmes, os quadrinhos pegaram emprestados da Sétima Arte a importância da justaposição de imagens e da elipse. O “efeito Kuleshov” explica que, colocando-se imagens diferentes em sequência, gera-se um significado que sozinhas elas não possuem. Alfred Hitchcock mostra a teoria na prática aqui (em suma, pra quem não quiser ver o vídeo: Hitchcock + criança brincando + Hitchcock sorrindo = velhinho bondoso; por outro lado, Hitchcock + mulher de biquíni + Hitchcock sorrindo = velhinho safado; e assim por diante). McCloud chama a técnica de “conclusão” (closure).
Já a elipse pode ser considerada a base de toda a narrativa quadrinística. Graças a ela, o autor não precisa mais explicar visualmente todos os passos de um personagem. A técnica permite a omissão de informações irrelevantes, facilmente identificáveis pelo contexto da cena, sem deixar a trama confusa.
Na página abaixo, tirada de Werewolves of Montpellier, qual seria a necessidade de mostrar o personagem (um assaltante que age à noite) sair de casa, fechar a porta e escalar o lugar que vai roubar? A elipse dá conta de preencher esses fatos que travariam o enredo. Pra mim, a capacidade de um roteirista usar bem uma elipse é proporcional à qualidade e à clareza de sua narrativa.
A partir da década de 1990, começou-se a incorporar conceitos de natureza não artística na forma de contar histórias. A arquitetura e o design gráfico, por exemplo, são cada vez mais encontrados nas páginas de obras contemporâneas (não entrarei no mérito se ambas as disciplinas são arte ou não).
Chris Ware, um dos principais expoentes da cena independente americana, ajudou a revolucionar a mídia ao fazer uso de plantas baixas e diagramas, fugindo do recorte comum das páginas com os tradicionais quadros retangulares. Ora, se até mesmo a matemática já fez parte dos quadrinhos (a geometria fractal em Watchmen, explicando a repetição de padrões da história humana), dá para se ter a ideia do quão esquizofrênica é a definição de HQ atualmente.
Existem ainda os quadrinhos digitais com leitura quadro a quadro, as motion comics (espécie de animação feita a partir de uma HQ), projetos experimentais que usam música, gifs etc. Enquanto mídia, quadrinhos não são literatura. Mas, quem sou eu pra dizer que Alan Moore e Neil Gaiman não são literatos? Que o texto psicodélico de Warren Ellis não encontra ressonância em David Foster Wallace? Que Grant Morrison não desconstrói a narrativa assim como Julio Cortázar? Também não são cinema, embora algumas de suas mais utilizadas formas de linguagem venham dele, tampouco pintura.
Em suma: quadrinhos são quadrinhos. Uma forma cada vez mais diferente, independente, estranha e atual de se contar histórias. O que mostrei aqui é apenas um pedacinho da chamada Nona Arte. Neste espaço, tentarei explicar o porquê vale a pena ler HQs.
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