O cheiro do papel, o relevo da capa, a textura da lombada… Ler envolve diversos sentidos, fato que influencia a forma de se relacionar com uma obra. Parece meme ou papo de vendedor, embora seja realidade, ainda mais em quadrinhos – dá pra se perder em discussões sobre o melhor papel para determinado tipo de desenho e cores, apresentação visual, acessibilidade ao público etc.
Na literatura, existe o “livro-objeto”, formado por experimentalismos gráficos dos mais diversos, obrigando o leitor a manuseá-lo de variadas formas. Caixas, livros dentro de livros, uso de materiais especiais como tecidos e pedras – um mestre nesse conceito é o brasileiro Gustavo Piqueira. Portanto, a leitura pode ser considerada (por que não?) um ato físico.
Alguns gibis também oferecem uma interatividade mais profunda que o mero virar de páginas – vide a série Julius Corentin Acquefacques, Prisioneiro dos Sonhos, do francês Marc-Antoine Mathieu, cuja publicação no Brasil foi iniciada agora em junho pela editora Comix Zone. Ao longo dos sete álbuns do título, o autor brinca (e o termo não poderia soar melhor) com as possibilidades do formato impresso. Por isso, esse trabalho serve como bom gancho para falar a respeito de um tipo específico de HQ – o qual nomeei, da forma mais direta possível, como “HQ de interação física”.
Muito mais que celulose
Pra começar, essa ideia precisa de certa fundamentação: não se deve confundi-la com projetos editoriais diferenciados. Aqueles tomos gigantescos da Taschen, como os volumes contendo as tiras de Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay, por exemplo, não oferecem uma forma diferenciada de se ler o conteúdo (tirando a necessidade de uma mesa para apoiá-los de tão pesados…). São “apenas” edições grandes. O mesmo vale para itens minúsculos, como os 13 cm x 13 cm de Pobre Marinheiro, de Sammy Harkham (publicado pela Balão Editorial). Sim, o autor pensou o gibi para aquele formato específico, quadradinho, quase de bolso. Porém, funciona como qualquer outro livro de qualquer outro tamanho – basta seguir página após página.
A coisa muda quando o leitor precisa fazer outras coisas para desfrutar a obra. Voltemos à Julius Corentin Acquefacques. Lançada ao longo das décadas de 1990, 2000 e 2010, a série mostra as desventuras do protagonista ao descobrir que vive dentro de um gibi. Viagem metalinguística das boas – melhor ainda por não se levar a sério, tratando o assunto com um humor pra lá de elegante. Acontece que a temática também é abordada fisicamente em cada volume. Mathieu recorta quadros, monta dobraduras, cola páginas umas nas outras, começa uma história pela página 7, faz o leitor virar um dos livros de cabeça pra baixo etc. E todas as soluções existem como requisito de roteiro, não são meros truques, nem maneirismos pra chamar a atenção.



E por mais curiosas que essas ideias pareçam, não eram novidade nos quadrinhos de então. Ainda nos anos 1980, a antologia Raw, de Art Spiegelman e Françoise Mouly, já havia subvertido as possibilidades do material impresso, principalmente em relação a seu caráter colecionável. A edição número 2 tinha chicletes e cards ilustrados com os personagens de uma das histórias; a 4 encartou um disco de vinil contendo trechos de discursos do ex-presidente estadunidense Ronald Reagan; a 7 aumentou a aposta: o canto superior da capa de todos os exemplares vinha rasgado – e a piada era encontrar no interior o pedaço faltante, só que de outra cópia. Era impossível “restaurar” a revista.

Talvez os quadrinhos citados nem sejam os pioneiros das tais “HQs de interação física”, mas servem como marcos relevantes de uma época na qual a tecnologia começava a permitir mais experimentação. De lá pra cá, outras brincadeiras do tipo surgiram com maior frequência, tanto no gibi independente como no mainstream, seja no Brasil ou em outros países. A seguir, listo algumas obras que se encaixam no conceito de usar uma solução física como elemento narrativo. De quais mais você se lembra?
- Surfista Prateado #11 – Felizes Para Nunca, de Dan Slott (roteiros) e Mike e Laura Allred (arte e cores)
A fase de Slott e dos Allred no Surfista Prateado é dos grandes quadrinhos de super-herói da década passada: uma verdadeira ode à ficção científica em pequenos enredos fechados, cheios de aventura, emoção e personagens em processo de autodescobrimento. A história Felizes Para Nunca, publicada lá fora na edição mensal número 11 (e, no Brasil, no encadernado Surfista Prateado – Últimos Dias – Volume 3), se baseia na teoria matemática da fita de Möbius, criada no século 19. Esta matéria da BBC Brasil explica os detalhes da teoria, mas vale resumi-la. A fita tem a forma semelhante à do número oito deitado e representa um objeto com apenas um lado, sendo impossível determinar sua parte de cima, de baixo, de dentro ou de fora. Pensando nisso, o roteiro coloca o Surfista num looping espacial, um lugar infinito sem saída – e a situação só pode ser resolvida pelo leitor: ao dobrar uma página sobre a outra, encaixando as marcações presentes nos rodapés, os personagens enfim se livram da prisão na qual se encontravam.


- Meanwhile, de Jason Shiga
Um livro pode comportar uma biblioteca? No caso de Meanwhile, sim: a obra oferece 3.856 possibilidades de história diferentes, graças a um sistema que permite ao leitor escolher o caminho da trama. A cada quadro, linhas indicam para onde seguir, e você o faz de acordo com sua vontade – quer que o protagonista faça o teste de um aparelho que lê mentes, uma máquina do tempo ou um dispositivo do juízo final? Cada escolha te levará a quadros e páginas diferentes, fazendo a leitura voltar, se adiantar, subir, descer… O conteúdo é uma aventura juvenil para todas as idades, inspirada nos games de “ficção interativa” dos anos 1980/90 – e vale dizer que a quadrinista Lovelove6 já produziu um jogo nesses moldes, o Labirinto do Necromante. Existe uma versão game de Meanwhile, que em tese facilita a interação, mas duvido ser mais divertido que ficar virando as folhas pra lá e pra cá.

- Me Leve Quando Sair, de Jéssica Groke, e Afronta, de Dieferson Trindade
Até Alan Moore e Kevin O’Neill encartaram objetos nos volumes encadernados de A Liga Extraordinária, incluindo um jogo de tabuleiro em um dos livros. Contudo, dois gibis independentes nacionais mudam a proposta ao trazerem coisas intrínsecas ao enredo. Em Me Leve Quando Sair, a protagonista visita uma pousada em Paraty, local onde refletirá sobre a relação com a família. O espaço é tão relevante para essa jornada que Jéssica Groke imprimiu um cartão de negócios com informações (fictícias) da pousada. Já Dieferson Trindade alcança ainda mais impacto emocional. Afronta abre com um desenho fofo feito por um dos personagens – o filho mais novo de um lar rachado pelo alcoolismo do pai –, mostrando toda a família feliz num dia de sol. No fim do quadrinho, o leitor encontra, em um pequeno envelope, uma reprodução desse desenho, mas os rostos estão todos rabiscados furiosamente. É a tradução visual de uma criança vivendo na linha tênue entre amor, ódio e desesperança.


- Smoking Mata, de Kash Fyre
Difícil achar um formato de gibi mais inusitado que o proposto por Kash Fyre (pseudônimo de Oskar Dimitry Rizzo). Lembra-se de quando falei que as “HQs de interação física” não podem ser confundidas com “projetos editoriais diferenciados”? Pois Smoking Mata consegue ser ambos: 16 tiras, enroladas como cigarros e acondicionadas num maço, que podem ser lidas cronológica ou aleatoriamente. A grande sacada é notar como a ordem de leitura oferece novas nuances ao enredo noir – ler determinada tira antes de outra muda o entendimento das motivações.



- Imbatível – Justiça e Legumes Frescos, de Pascal Jousselin (com cores de Laurence Croix)
Outro clássico francês da metalinguagem saiu por aqui não faz muito tempo, pela Nanabooks. Imbatível é um super-herói que só poderia existir nos gibis: por saber que está numa HQ, ele soluciona crimes sem suar, andando por entre os quadros das páginas e se antecipando aos movimentos dos bandidos. São várias gags de humor baseadas nessa estrutura – algumas absurdamente criativas, outras nem tanto, todas trazendo frescor ao gênero. Até que, em determinada história, o ajudante de Imbatível impede um vilão de aniquilar a cidade com um canhão de laser. O resultado é uma página “queimada”.


- Perigeu, de Vitorelo
Outro independente a entrar na lista, Perigeu usa a transparência do papel vegetal para sobrepor narrativas sem diálogo. São apenas três páginas de um enredo mais simbólico que descritivo: Vitorelo parece falar sobre renascimento, reconstrução de si próprio. Para isso, faz as páginas dialogarem por meio dessa transparência, fundindo os tempos presente e futuro da trama.



- Building Stories, de Chris Ware
Por fim, mas não menos importante, uma das experiências máximas do conceito de “interação física”. Uma caixa cheia de quadrinhos dos mais variados tamanhos e formatos só poderia vir da mente de Ware. Ali dentro tem jornal, livro capa dura, folheto, brochura, algo que se abre como um tabuleiro etc. Apesar de intimidador, Building Stories não te obriga a nada: pode-se ler os conteúdos na ordem que preferir – nem mesmo é necessário ler tudo de uma vez pra entender as histórias. O importante é notar, mais uma vez, o olhar afiado do autor em relação às teias de relações humanas, e como elas evoluem ou se deterioram.

Curta a página de O Quadro e o Risco no Facebook e siga o blog no Instagram!


Deixe um comentário