O morador da periferia das grandes cidades brasileiras tem mais em comum com o cidadão japonês pós-Segunda Guerra do que aparenta. Em maio de 2020, João Pinheiro fez a HQ Farol de Quebrada para o site do Instituto Moreira Salles – leia na íntegra aqui. Num estilo diário, com texto franco em primeira pessoa, ele conta os perrengues enfrentados pela quebrada paulistana durante o início da pandemia. O formato nem era novo, pois outros artistas já narravam a rotina de confinamento e o medo de um vírus mortal. Mas a estética escolhida chamou a atenção: Pinheiro desenha um verdadeiro gekigá suburbano verde e amarelo, roubando (conscientemente) o visual de um clássico da década de 1960 feito por Tsuge Yoshiharu para criar (talvez inconscientemente) um paralelo entre indivíduos distantes no tempo e espaço, porém semelhantes na essência.
Farol de Quebrada, reproduzida ano passado em Depois Que o Brasil Acabou, livro da Veneta compilando histórias do autor, se inspira em Nejishiki, a obra que moldou o quadrinho moderno ao inserir uma então inédita abordagem subjetiva à mídia. Enquadramentos angulosos, uso de um preto profundo, rostos encobertos por sombras, tons alaranjados aqui e ali, hachuras dando textura ao mundo desenhado: a estética do gekigá (e do mangá alternativo dos 1960/70) casa bem com a realidade da periferia nacional. Tem espaço até para um aceno ao aspecto surreal do gibi de Tsuge – carros importados e aviões da elite flutuam por cima dos barracos, como se colocassem quem vive nas vielas e morros em seu devido lugar.


Nas redes sociais, João Pinheiro é ávido divulgador de artistas japoneses daquela época, de Abe Shinichi a Tsuge Tadao (irmão de Yoshiharu). E nada melhor que o próprio quadrinista comentar a respeito dessa ligação.
Como se deu seu contato com os autores do gekigá e do quadrinho alternativo japonês?
Começou com Lobo Solitário nos anos 1990, que não era um gekigá – e eu nem sabia desse movimento na época –, mas trazia uma ideia de quadrinho japonês diferente das coisas que eu havia lido até então. Antes disso, tive contato com a minissérie do Wolverine, de Chris Claremont e Frank Miller. Em uma entrevista publicada no último número dessa série, os dois comentavam a influência do romance Xógum, de James Clavell (lido por mim na sequência), e também de Lobo Solitário, que a gente encontrava em edições esparsas desde o final dos anos 1980, pelas editoras Sampa e Cedibra. De Lobo, me impressionaram os detalhes históricos, os cenários realistas e principalmente o enredo e as cenas de ação muito diferentes dos quadrinhos norte-americanos. As HQs já não foram a mesma coisa depois daquilo.
Fui lendo outras obras que saíram com essa mesma pegada: Crying Freeman, Mai – A Garota Sensitiva. Na sequência, a Conrad publicou Suehiro Maruo e fiquei igualmente impressionado. Mas dessa vez o impacto foi mais em como ler/ver as imagens de um Marquês de Sade pós-atômico. Finalmente, só no início da década passada é que fui ter contato com os grandes mestres que deram forma ao gekigá, principalmente Tatsumi Yoshihiro e Tsuge Yoshiharu. Não me lembro exatamente, mas me guiando por uma postagem no Facebook, em 2013, creio que foi por ali quando encontrei Nejishiki.


Nos trabalhos de Tsuge, os personagens geralmente estão em descompasso com o mundo ao redor: a vida mudou e eles tentam acompanhar uma nova realidade. Vemos pessoas sem status social, vagando pelas cidades, tentando se ocupar com algo – de forma concreta ou metafísica. Dá pra dizer que o morador da quebrada seria um personagem desse tipo, só que em meio à metrópole?
Sim, até porque os moradores das periferias (em sua maioria migrantes ou filhos de migrantes) tentam o tempo todo encontrar seu lugar na sociedade, mas têm seus direitos à cidadania constantemente sonegados. Na prática, a cidadania não é para todos, visto que se você não tem teto, não tem comida, não tem emprego, não tem seus direitos básicos respeitados, qual é o sentido de falar em cidadania e democracia? Você sente um mal-estar, pois percebe que a democracia é para os ricos. É como se tivéssemos duas categorias de pessoas: os cidadãos de primeira classe e os de segunda. Aos primeiros, tudo; aos demais, apenas os restos – quando muito.

Quais as motivações e inspirações para Farol de Quebrada? Qual a ligação que você encontrou entre o tema da HQ e o estilo desses artistas?
Na real, foi mais como um encontro de sensibilidades, sabe? Desde meu livro sobre a Carolina de Jesus, meu trabalho dialoga com a abordagem do mestre Tsuge. Acho que, na minha vida adulta, Nejishiki foi o quadrinho que mais me impactou – diria arrebatadoramente. Carolina já tem muito dessa influência na composição e narrativa, e Farol de Quebrada é uma consequência direta desse processo. Meu desenho caminhou para esse encontro.
O gibi mais recente de João Pinheiro é Barrela, pela editora Brasa, uma adaptação da peça homônima do dramaturgo Plínio Marcos. A obra pode ser encontrada aqui.
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