A história de como Bernard “Bernie” Krigstein esbarrou no mercado de quadrinhos e fez dele seu ganha-pão é a mesma de vários jovens americanos aspirantes à pintura, geralmente judeus, nascidos no fim da década de 1910, começo de 1920. Impossibilitados de ganhar dinheiro com as “belas-artes”, culpa do caos econômico no país após a Grande Depressão, enxergaram nos comics uma maneira eficaz para continuar desenhando e sobrevivendo – embora passassem a ser considerados artistas menores por seus pares.
Ao mesmo tempo, a história de como Krigstein se tornou uma influência fundamental para a linguagem das HQs é única, seguida por poucos contemporâneos (Will Eisner, Jack Kirby e Harvey Kurtzman, no máximo). O conhecimento formal adquirido na escola de arte trouxe a seu trabalho inspirações distintas: os traços distorcidos são dos filmes do expressionismo alemão, o tratamento em relação a sentimentos de personagens vem da literatura do russo Anton Tchekhov, e ainda tem referências a Piet Mondrian, Paul Cézanne, Futurismo, China antiga etc. Mas isso nem é o principal quando se fala de sua formação.
Ele sabia desde cedo que dava para transformar um gibi numa forma legítima de expressão artística – algo inimaginável quando começou no ramo, em 1943. “É o que acontece entre os quadros que torna tudo tão fascinante”, comentou em entrevista vários anos depois. “A menos que o artista tenha permissão para mergulhar nessas questões, a forma usada continuará a ser infantil”. Para maior liberdade criativa, portanto, o segredo estava em acabar com o número rígido (e baixo) de painéis por página e cortar texto.
Fábrica de salsicha
O jornalista e pesquisador Paul Gravett, neste artigo, resume como o aspecto industrial da produção esmagava pretensões como as de Bernard: “Com o espaço sendo uma raridade e layouts padronizados, até mesmo pré-desenhados, a ideia de um quadro sem palavras, ainda que significativo, era quase impensável. Quadrinhos não tinham o direito de permanecerem em silêncio. A palavra sempre tinha a última palavra.”
Vale ver na prática como as coisas eram feitas. Como exemplo, dois títulos de março de 1955.
Já na EC Comics, casa muito mais progressista, teve carta branca para ilustrar isso aqui, a tal página que mudou as HQs, considerada uma mais estudadas por críticos e criadores desde então:
Essa é a página final de Master Race, história escrita por Al Feldstein, talvez a primeira dessa mídia a comentar abertamente o tema do Holocausto, num período no qual pouco se falava desse trauma. Apareceu na edição número 1 de Impact, publicada sabe quando? No mesmo mês dos dois gibis ali em cima.
Sério, volte e compare o incomparável. A narrativa de Bernard parece uns trinta anos, no mínimo, à frente dos demais. Hoje, é usual encontrar revistas com diagramações parecidas – ou ainda mais fragmentadas. À época, não existia nada igual. E a chave para entender a mudança está na manipulação do tempo (já falei sobre isso, abordando outro ângulo do assunto, aqui).
O tempo descomprimido
Seu mérito foi perceber que, ao descomprimir as ações, tem-se maior controle sobre os efeitos da leitura. Por que mostrar um acontecimento em apenas um quadro, se é possível fatiar o tempo, estendendo-o até o limite para causar algum sentimento específico em quem lê?
Contexto básico: o personagem morto nos trilhos é Carl Reissman, ex-oficial nazista responsável por um campo de concentração vários anos atrás. Num dia comum, ele encontra um homem que teria sido seu prisioneiro. Tomado pelo pânico, Reissman foge somente para encontrar um destino trágico embaixo do trem – e a jogada do roteiro é nunca deixar claro se esse encontro realmente ocorreu ou foi criado pela mente atormentada do protagonista.
Art Spiegelman, fã confesso do autor, escreveu belo artigo sobre ele na New Yorker em 2002. A certa altura, o texto define a revolução causada pelos onze quadros que mostram a queda para a morte: “As duas colunas de painéis sem palavras, como num staccato, que concluem a história se tornaram famosas entre os letrados em quadrinhos. Elas são muitas vezes descritas como ‘cinematográficas’, termo completamente inadequado para o que representa: Krigstein condensa e distende o tempo. A perseguição que acaba com Reissman tem quase o mesmo número de quadros oferecidos para contar toda a década de Hitler; a vida de Reissman flutua no espaço como a matéria suspensa numa lâmpada de lava. O efeito cumulativo carrega um impacto – ao mesmo tempo visceral e intelectual – único para os quadrinhos.”
Ressoando através dos anos
A comoção gerada por Master Race não foi imediata. Sua influência começou a ser vista de verdade na metade da década de 1960 em Jim Steranko, que bebia de várias fontes (pop art, psicodelia, surrealismo, quadrinho experimental europeu). Longas cenas sem diálogo, quadros longos e finos: Krigstein assinaria a seminal Nick Fury, Agent of S.H.I.E.L.D. com orgulho.
Frank Miller também deve muito ao desenhista. Uma das sequências mais importantes de um dos gibis mais importantes de super-heróis (Batman – O Cavaleiro das Trevas, de 1986) eleva a solução gráfica de Master Race às últimas consequências – são quase três páginas que recontam a morte dos pais de Bruce Wayne momento a momento, esticando o tempo ao máximo. Nesta entrevista, Miller foi franco em relação à similaridade com Bernard: “Não quis fazer um paralelo. Ele veio antes e eu o imitei.”
Dave Gibbons, Mike Mignola, Frank Quitely, David Aja… A lista dos influenciados por Krigstein é enorme. Embora tenha deixado as HQs pouco depois de fazer tal experimento, dedicando-se à pintura, ilustração e ensino da arte até falecer, em 1990, fez mais que inúmeras carreiras longevas.
E, a partir da próxima semana, o leitor brasileiro finalmente terá contato com seu trabalho. A Veneta lançará a coletânea O Perfeito Estranho, incluindo os contos que desenhou para a EC e textos do pesquisador Greg Sadowski e do editor Rogério de Campos a respeito da trajetória do velho gênio. Master Race estará no meio – ótima oportunidade pra ver como alguém, praticamente sozinho, revolucionou a história de uma mídia para sempre.
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