Um homem jovem, boa pinta, que cultiva amizades e mulheres por onde passa, metido em aventuras pelos mais variados cantos do mundo. Falo de Corto Maltese, a maior criação do mestre italiano Hugo Pratt? Não. A descrição também cabe a Dieter Lumpen, personagem do roteirista argentino Jorge Zentner e do desenhista espanhol Rubén Pellejero que pode até parecer um Corto genérico, mas é tão bom como o original.
Não existem muitas histórias com Lumpen. Todas foram produzidas nos anos 1980/90 – e estão compiladas nesse volume lançado pela IDW, em 2016. As primeiras delas são curtas, não passam de dez, doze páginas. As últimas se assemelham ao clássico formato de álbum europeu, mais longas e complexas. Misturam ação física, tramas de mistério e misticismo – nada inédito, até porque tudo isso já tinha sido visto nos enredos do Corto. Mesmo assim, envolvem e entretêm de forma inexplicável.
O texto conciso de Zentner ajuda nessa tarefa, ainda que a obra fosse pouco sem a arte e as cores de Pellejero. Muito do sentimento das cenas vem da paleta escolhida pelo artista. Seu trabalho é uma cartilha de como as cores também são ferramenta narrativa e servem para diferentes finalidades. A seguir, algumas lições do espanhol.
-Definir estado de espírito dos personagens
Em His Master’s Voice, o protagonista viaja à Índia para encontrar um amigo recluso há anos. Lá, junta-se a ele numa busca mágica pela “verdade”. A jornada começa confusa, com o atolamento do veículo usado pelos rapazes em meio à tempestade. Pintada de um verde lodoso, a cena traduz o incômodo e a dificuldade vividos.
Mais tarde, quando os problemas se resolvem, o pôr-do-sol acima ilumina o quadro com poesia em roxos, azuis, laranjas, amarelos.
-Definir características de um local
O céu do deserto na Tunísia em amarelo saturado de doer o olho significa calor sufocante – sem precisar escrever isso.
Já os diferentes tons de azul da ilha iluminada pela luz noturna trazem uma aura de mistério para um espaço desconhecido pelos personagens.
-Pontuar momentos de ação
Num diálogo, a exclamação serve para dar ênfase na fala de alguém. Agora, como destacar um momento específico dentro de uma cena sem apelar pra onomatopeias gigantes ou outro elemento textual? Pellejero usa o vermelho pra fazer o quadro “saltar” da página. Claro que essa colorização não tem nada de naturalista, mas esse é o objetivo – destoar de propósito do restante da sequência; berrar para o leitor, em cores, “olha isso aqui!”.
-Criar tensão
Lumpen e certa personagem estão à procura de um artefato de valor, quando finalmente encontram seu paradeiro (um antiquário em Istambul). Ao chegar lá, Pellejero, sabendo da ansiedade de quem está lendo, deixa todo o exterior em sombras, enquanto ilumina o interior completamente. Tá na cara que algo vai acontecer ali dentro…
-Mudar andamento do roteiro
Na última história do Lumpen, ele vai parar num restaurante bizarro, administrado por pessoas bizarras. A “iluminação” muda de repente – e o tom da trama também: os roxos, azuis e vermelhos dos neons fazem a situação ganhar contornos oníricos.
Esse é Rubén Pellejero, o artista que narra o desenrolar de um dia somente com cores.
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