ZDM: um clássico subestimado da Vertigo

“A primeira vítima da guerra é a verdade”

A antiga frase, atribuída ao senador norte-americano Hiram Warren Johnson, seria a epígrafe perfeita para ZDM, criação do roteirista Brian Wood e do desenhista Riccardo Burchielli. Com 72 edições mensais, publicadas de novembro/2005 a fevereiro/2012, é uma das últimas obras de fôlego lançada pelo selo Vertigo, da DC Comics, com relevância política.

Aqui no Brasil, após anos de periodicidade irregular, a série foi concluída em dezembro passado pela Panini. Em tempos de acirramento das convicções políticas, endurecimento de discursos extremistas e alienação da opinião pública por meio de informações falsas que se passam por reais, ZDM está mais atual que nunca.

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Estados Divididos da América

População com renda de subempregos em cidades falidas; guerras travadas pelo mundo consumindo o orçamento da união; mágoa por promessas vazias de governantes; sentimento de não se sentir representado. Mais parece a América que elegeu Donald Trump, mas são os EUA em meio à sua segunda guerra civil.

Brian Wood imagina um país rachado, cujo tecido social se dissolveu após os atentados de 11 de setembro (em 2001) e a invasão ao Iraque (2003). De um lado, estão os Estados Livres da América (ELA), ao mesmo tempo um movimento separatista, uma milícia de combatentes e um chamado à liberdade semeado a partir da região central do país. Do outro, o exército que luta sob as cores da bandeira, a instituição “oficial” com o objetivo de defender a unidade da nação.

O ELA marcha pra tomar Nova York, mas para do outro lado do Rio Hudson, em Nova Jersey. O exército americano se posta nos distritos do Brooklyn e Queens. No meio, está Manhattan, declarada zona desmilitarizada. O lar restante para cerca de 400 mil habitantes, pessoas impossibilitadas de fugir do combate, incluindo militares, mercenários, terroristas, membros de missões humanitárias, gente comum.

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Desenvolvimento padrão, pero no mucho

Quando a trama começa, o conflito acontece há tempos. O protagonista Matthew “Matty” Roth, forasteiro em NY, é estagiário de fotografia e acompanha um jornalista de alto gabarito para dentro da ZDM. O helicóptero em que viajam é abatido pouco antes do pouso – e Roth então precisa sobreviver num local hostil.

A estrutura inicial tem nada de original (personagem dentro de uma situação à qual estava alheio, para servir como “guia” do enredo). Porém, todo o pano de fundo está consolidado desde a primeira página da edição inicial. Com isso, a história se insere no mundo imaginado pelos criadores, não o contrário. Os fatos acontecem por si mesmos, sem imposição do roteiro.

Um exemplo disso: as motivações reais para a criação do ELA jamais são explicadas. No antepenúltimo arco da série até surgem detalhes dos primeiros momentos do levante – e do que poderia ter levado ao seu surgimento. Mesmo assim, muito fica subentendido, enquanto algumas questões jamais são respondidas.

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I wanna wake up in a city that doesn’t sleep

Acima, escrevi que o fotógrafo seria o protagonista. Ledo engano: sem Nova York, a HQ teria metade do impacto – curioso que Wood nem nasceu ali (mas no estado de Vermont, mais ao norte); Riccardo Burchielli, menos ainda (italiano da região da Toscana).

E não digo isso apenas me referindo ao espaço físico de Manhattan – embora pontos turísticos como Empire State Building, Madison Square Garden, Flatiron Building, Estátua da Liberdade e bairros famosos (Harlem, Village) sejam importantes para a história. São as pessoas que traduzem as luzes, cheiros e gostos da metrópole.

Há todo um senso de comunidade, de identidade, em relação à ilha. Aquele pedaço de terra é um local de resistência contra a política, contra a máquina da guerra que esmaga inocentes, contra o autoritarismo vindo dos engravatados e fardados. Para narrar esse sentimento sob diferentes pontos de vista, existem plots secundários maravilhosos, estrelados por personagens tão interessantes como os principais.

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Zee Hernandez, a enfermeira durona; Comandante, traficante de armas pé-rapado que se torna um dos chefes do ELA; Wilson, o chefão de Chinatown com mãos de ferro e coração mole; Decade Later, o grafiteiro sabotador das regras do sistema; Amina, jovem extremista em busca de redenção; Parco Delgado, líder de bairro alçado a solução para um governo feito pelo povo e para o povo de Manhattan; Soames, soldado desertor, protetor da vida natural e selvagem do Central Park; Tony, membro de um grupo homicida/terrorista.

Todos com características próprias, personalidades verossímeis, longe de meras caricaturas. Os que sobrevivem até o término da trama se transformam indivíduos bem diferentes daqueles que começaram a jornada.

 

Todo dia é 11/9

As andanças de Matty Roth o fazem entrar em contato com várias facetas do conflito – ainda mais por atuar como correspondente extra-oficial de um veículo com ligação direta aos altos escalões. A principal lição aprendida: o confronto não se dá apenas fisicamente. Conquistar corações e mentes se mostra fundamental para ganhar batalhas.

Voltemos, então, para a frase da abertura deste texto. Bush filho invadiu o Iraque usando uma mentira deslavada – a de que o regime de Saddam Hussein escondia armas de destruição em massa. Somente após a queda do ditador a acusação se mostrou falsa. Porém, parte do planeta já tinha comprado a versão fantasiosa. Na guerra, a verdade é a principal vítima, já que todas as outras vêm na sequência.

Alguns dos arcos mais perturbadores da série tratam desse assunto. Sobre o soldado raso recai a culpa por chacinas de inocentes, enquanto os superiores sedentos de sangue saem impunes. O corpo de um jornalista morto por bala do exército fica escondido pelo tempo necessário para amenizar a situação. Um artefato nuclear é detonado com o objetivo de culpar o outro lado. Afinal, o que é a verdade? Aquilo que permitem você saber.

O choque de realidade faz o idealismo inicial de Matty dar lugar a uma visão de mundo pessimista. Típico de quem finalmente se percebe muito pequeno pra parar as engrenagens em movimento. Ao longo da obra, há um profundo desenvolvimento de sua persona. Ele não hesita em abandonar crenças estabelecidas, tomar decisões surpreendentes, arrepender-se na sequência, questionar seu papel dentro do conflito. O destino de Matty ao final da história adiciona ainda mais complexidade ao personagem.

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A identidade visual da guerra

Burchielli desenha uns 80% das edições – e seu traço evolui pra melhor durante os mais de seis anos de publicação. No começo, o italiano parece misturar o hiper-detalhismo de Darick Robertson (Transmetropolitan) com a estilização de Eduardo Risso (100 Balas). Resultado: a arte parece um corpo estranho, sem ligação com a seriedade do roteiro.

O tempo passa e o desenho fica mais limpo, menos caricato, encaixando-se à proposta da HQ. E nem mesmo esse pequeno desencontro impede a apreciação do uso de sombras e da ótima composição de quadros em tomadas abertas ou claustrofóbicas (Burchielli manja dos dois extremos). Uma história curta em preto e branco, lá pra metade final da série, acaba com as possíveis dúvidas em relação ao seu talento.

Uma equipe de colaboradores, todos de alta qualidade, vira-e-mexe aparece para desenhar arcos pequenos ou one-shots. Destaque para Nathan Fox, cujo estilo sujo lembra Paul Pope, e Danijel Zezelj, gênio croata da ilustração que usa pinceladas grossas e abstratas.

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Página de Nathan Fox
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Arte de Danijel Zezelj

 

Essas diferentes escolas de arte têm a unidade visual garantida graças ao colorista Jeromy Cox. Sua paleta usa diferentes núcleos de cores para estabelecer o sentimento das cenas, incluindo tons neutros e terrosos para pintar a destruição de Manhattan, e quentes para flashbacks e cenas longe do ambiente de combate, por exemplo.

As capas também merecem ser mencionadas. Brian Wood (que também é desenhista) e John Paul Leon se revezam para criá-las – e optam por algo próximo do design, utilizando elementos como mapas, logotipos, fontes e diagramas. Este link compila todas, uma mais impactante que a outra.

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Clássico subestimado da Vertigo

Ao se fazer uma lista rápida das melhores séries longevas do selo, talvez esse quadrinho nem seja lembrado – injustamente. Afinal, conta com soluções corajosas de enredo, nunca se contentando com saídas óbvias. E ainda cutuca com propriedade feridas abertas da política americana: o terrorismo doméstico, a indústria bélica cada vez mais lucrativa, o uso da tortura em prisões.

Em ZDM, a arte imita a vida – e vice-versa.

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2 respostas para “ZDM: um clássico subestimado da Vertigo”.

  1. Eu só li uns poucos números dessa série que me foram emprestados por um amigo,e não gostei do que vi.Ela me pareceu uma fantasia militarista feita sob encomenda da NRA(National Rifle Association),entidade que advoga o porte e uso irrestrito do uso de armas pela população civil.
    Considero que o principal problema da trama é o seu etnocentrismo porque,enquanto o pau come dentro do território americano,não se fala em como a Segunda Guerra Civil é vista fora das fronteiras americanas. O que será que a União Européia,o Japão,a China e a Rússia(dentre outros),pensam a respeito?Mistério.
    O autor também parece não se preocupar com o fato de que,numa situação como a mostrada no gibi,muitos americanos iram emigrar para outros países.O comercio exterior iria desabar e a decadência econômica seria inevitável.Ou seja:quando abrissem os olhos(pouco importando quem vencesse o conflito),os americanos poderiam estar no Terceiro Mundo,e descobrir que enquanto brigavam entre si outros países,(ex:China,Rússia,Brasil e México)os passaram para trás,talvez com ajuda daqueles americanos que deram no pé quando a situação ficou insustentável pra eles em sua própria terra natal,levando consigo dinheiro e conhecimento tecnológico.
    Como nunca li o final de ZDM,fico imaginando se o Brian Wood deu alguma solução satisfatória para tudo isso.

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    1. Obrigado pelo comentário, amigo!

      Realmente a série só engrena lá pelo terceiro ou quarto arco, quando termina o enredo básico e passo a mostrar outros lados dessa guerra civil. Mais diversidade e personagens interessantes aparecem.

      Aos poucos, várias questões misteriosas são inseridas ou ao menos citadas – não lembro se exatamente tudo o que mencionou, mas alguma coisa sim, até questões envolvendo ONU e crimes de guerra. Pessoalmente, não tenho problema com o escopo ser mostrar apenas a situação interna dos EUA. Acho que a série funciona também por esse parâmetro bolado pelo Wood. Ampliar mais poderia perder o foco dessas pequenas histórias contadas ao longo das edições.

      Abraço!

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