O poema épico Beowulf é uma das pedras fundamentais da literatura inglesa. Produzido em algum ponto entre os séculos 8 e 11, continua sendo estudado em escolas e universidades, por especialistas em linguística e semiótica. Tolkien, o criador de O Senhor dos Anéis, dizia que a obra estava entre suas “mais valiosas referências”.
Ao longo dos anos, virou filme, peça, ópera, livro, videogame, quadrinho. Então, chegamos a 2014, quando o espanhol Santiago García publica um projeto pessoal antigo, engavetado por muito tempo. Junto do ilustrador David Rubín, cria um deslumbre visual medieval. Tão deslumbrante que até a Image Comics se interessa pelo material, publicando uma belíssima edição da obra, em inglês, no começo deste ano. Admito que nunca tive muito contato com as várias adaptações de Beowulf. Mas a graphic novel dessa dupla é tão forte que, olha, tem tudo pra ser a versão definitiva do épico.
A trama da obra original é seguida à risca: vemos, basicamente, o guerreiro nórdico Beowulf enfrentando criaturas monstruosas em dois momentos distintos de sua vida – ainda jovem e, décadas depois, já coroado rei de seu povo. A história se divide em três grandes partes, cada uma com cerca de sessenta páginas.
Dentro dessa estrutura episódica, dá pra notar que os autores criaram algo semelhante a uma métrica. Não que isso seja tão claro de se perceber. Mas o desenvolvimento do enredo é semelhante em todos os capítulos, como se espelhassem uns aos outros. Exemplo:
-o primeiro terço de cada capítulo mostra um problema – o aparecimento de um monstro num vilarejo;
-na sequência, tem-se a busca por uma solução desse problema – é a preparação para o combate;
-por fim, o problema é resolvido – a luta em si.
Mais que recontar uma história contada inúmeras vezes, os espanhóis oferecem uma visão própria, mais voltada para a ação (afinal, se espremer o clássico só sai pancadaria com monstros). No entanto, essa ação não é burra, muito por conta da inventividade de David Rubín. Não digo que os diálogos sejam irrelevantes – García tem um texto bem leve, mesmo ao adaptar algo tão antigo. Mas é no visual que a HQ se diferencia.
O desenhista já trabalha no mercado norte-americano e vem ganhando espaço no cenário autoral, em parcerias com gente do quilate de Matt Kindt. Seu estilo de desenho tem um pouco do traço caricato e disforme de Paul Pope (incluindo o uso de onomatopéias), e do jeitão cômico de fazer feições de Mike Allred, tudo misturado a cores bem densas.
Apesar de lembrar alguns artistas consagrados, o trabalho de Rubín é único pela liberdade na construção da página. Difícil encontrar grids de quadros semelhantes em Beowulf. Tem de tudo: imagens grandes pontuadas por quadrinhos pequenos (mostrando detalhes da ação), painéis na horizontal (de um lado a outro da página), na vertical (de cima a baixo), splash pages, desenhos dentro de onomatopéias etc.
Somado a isso, está uma baita noção de ritmo narrativo – nesse sentido, os méritos também vão para o roteiro de García. Pois a HQ não é só espada e criaturas fantásticas. A espera pelo combate, o medo de encarar o desconhecido, é tão importante quanto as batalhas. São maravilhosas as páginas silenciosas, nas quais a hesitação dos personagens cria uma sensação palpável de suspense. Então, a violência explode de repente e tudo termina de forma rápida, brutal.
Agora que está disponível no mercado americano, a graphic novel pode atingir um público muito maior. Além de ser um espetáculo visual, é também um espetáculo sensorial de formas e cores (o tamanho gigante da publicação, no tradicional estilo europeu, deixa a arte mais viva, saltando das páginas). Pra mim, já se firma como um dos destaques do ano. A lenda de Beowulf ainda vai viver muito tempo entre nós.
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